CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 28
VIDA SOCIAL
À noite, surpreendiam-me os sublimes aspectos do firmamento
no Posto de Socorro. O luar safirino envolvia todas as coisas.
O
céu era qual infinita colcha de azul muito límpido, pontilhado de
astros fulgurantes.
As nuvens da tarde haviam desaparecido.
Contemplando a beleza da noite, Alfredo acentuou:
– Felizmente, os fenômenos magnéticos foram deslocados do
nosso circulo.
Os aparelhos, porém, continuam registrando enorme
conflito de forças inferiores.
Ia comentar a beleza do céu, ante a observação do administrador,
quando a campainha retiniu suavemente.
Chamavam à entrada.
Alfredo e Ismália sorriram.
Muito gentil, o chefe do Posto asseverou:
– Temos a visita de amigos do “Campo da Paz”.
E, convidando-nos à recepção no baluarte avançado, acrescentou
jovialmente:
– Temos, também, aqui, a nossa vida social. Como não? É
preciso saber viver.
Encantado com essa nota alegre, acompanhei os donos da casa,
verificando, com indizível surpresa, que tínhamos sob os olhos
um belo carro tirado por dois soberbos cavalos brancos.
Tratavase
de veículo confortável e interessante, quase idêntico aos velhos
carros de serviço público, do tempo de Luis 15, que eu vira, mais
de uma vez, em publicações antigas.
Nele chegara pequena família
da colônia próxima, que, pelas informações de Aniceto, demorava
a três léguas do Posto, aproximadamente.
Alfredo apresentou-nos, cavalheirescamente, com exceção de
nosso orientador, que era velho amigo dos recém-chegados.
Constituíam-se os visitantes do casal Bacelar e duas filhas jovens.
O chefe do grupo mostrava idade avançada, revelando,
porém, excelentes disposições.
A senhora dava impressão de
madureza, aparentando, contudo, maravilhosa vivacidade, assim
como as duas moças.
A alegria era enorme.
Não se observava qualquer nota de
convencionalismo menos digno, como na Terra.
Os gestos de cada
um, a simplicidade, a despreocupação e as frases afetuosas demonstravam
sinceridade pura. Permanecíamos num quadro social
inacessível ao fingimento.
Voltando ao interior doméstico, entre grandes manifestações
de júbilo familiar, observei que os recém-chegados eram amigos
de muito tempo, que vinham ao encontro de Ismália.
A nobre
senhora pareceu-me contentíssima.
Expediu recados afetuosos
para algumas famílias do Posto e, em breves minutos, o castelo
recebia inúmeras pessoas que concorriam ao brilhantismo da
seleta reunião.
Sentindo-me assaz insignificante, ao lado dos novos amigos,
limitava-me a ouvir e observar.
Logo aos primeiros instantes de conversação particularizada,
ouvi Aniceto perguntar ao senhor Bacelar:
– Como corre o serviço?
O velho bondoso respondeu num sorriso largo:
– Bem, sempre bem.
Apenas não podemos fixar demasiada
atenção nos companheiros encarnados.
E ajuntou com graça:
– É indispensável aprender a servir e passar.
Nosso instrutor sorriu igualmente e observou:
Compreendo, compreendo.
Aliás, o progresso humano não
é uma questão de dias.
Não tenhamos ilusões.
E, percebendo que Vicente e eu poderíamos aproveitar com a
palestra, Aniceto indicou o novo hóspede de Alfredo, explicando
solícito:
– Nosso amigo Bacelar é chefe de turmas de assistência aos
nossos irmãos do círculo carnal.
Tem longa experiência dos homens
e conhece-os como ninguém.
Há muito que aproveitar nas
suas observações.
– Não tanto, meus caros – exclamou o senhor Bacelar, de
bom humor – não tanto.
Sou simples companheiro de vocês,
cumprindo deveres por acréscimo da misericórdia divina.
Não
posso fazer muito, em razão de minhas deficiências naturais.
– Estamos certos do grande proveito da sua palavra – objetou
Vicente, até então calado.
– Tudo o que nos disser sobre o problema de assistência constituirá,
para nós, ensinamento precioso – disse por minha vez.
O novo amigo fitou-nos com inteligência, e perguntou:
– Foram médicos no mundo?
– Sim – respondemos a um só tempo.
O senhor Bacelar pensou alguns momentos e acentuou:
– Sempre gostei de conversar com os amigos, recorrendo aos
símbolos sugeridos pela profissão que exercem.
Mas, no tocante
às minhas atividades, não teria muito o que dizer a médicos militantes.
– Pelo contrário – aduzi –, seus esclarecimentos enriquecerão
nossas experiências.
O interlocutor sorriu, otimista, e declarou: Não creia.
Recorde os seus doentes comuns.
Muito raramente
lembram a medicina preventiva.
De modo quase invariável,
esperam a positivação das moléstias para buscarem o recurso
preciso.
Necessitam de anestésicos para o socorro do bisturi.
Fogem ao regime tão logo surja a primeira melhora.
Confundem o
método de tratamento, apenas se registre o primeiro sinal de cura.
Detestam a dor que restabelece o equilíbrio.
Descontentam-se
com a indicação de purgativos.
Preferem a medicação de sabor
agradável.
E, sobretudo, quase sempre querem saber muito mais
que os médicos.
Esta síntese aplicável a corpos doentes representa,
em nosso campo de serviço, o resumo do programa de assistência
aos Espíritos enfermos, encarnados na Terra, e com agravantes
de vulto, porque, em nosso setor, não podemos manipular a
alma, à maneira do cirurgião que opera as amídalas.
Somos forçados
à preparação do campo mental conveniente, a proceder à
semeadura de pensamentos novos, velar pela germinação, ajudar
os rebentos minúsculos e aguardar a obra do tempo.
Nossa luta
não é simples, porque, se o clínico do mundo encontra sempre
familiares amorosos, dispostos a cooperar com ele em benefício
do doente, o que encontramos, por nossa vez, são enormes legiões
de elementos adversos à nossa atividade restauradora e curativa.
Em geral, o médico do mundo presta socorro a quem deseja recebê-
lo, pelo menos nas ocasiões de graves perigos; nós, porém,
meus amigos, muitas vezes temos de prestar assistência aos que
não a desejam, por viverem sob véus de profunda ignorância.
– Tem razão – murmurei, ouvindo comparações tão lógicas –;
entretanto, vale por conforto a certeza de que há muitos cooperadores
encarnados no mundo prontos a colaborar na tarefa.
O senhor Bacelar teve uma expressão fisionômica muito significativa,
e revelou:
– Nem sempre.
A cooperação é outro problema.
A maioria
dos irmãos que se propõem ao serviço, partem daqui prometendo,
mas gostam de viver descansados, no planeta.
Poucos fogem ao
estalão comum.
Raramente encontramos companheiros encarnados
com bastante disposição para amar o trabalho pelo trabalho,
sem idéia de recompensa.
A maioria está procurando remuneração
imediata.
Nessas condições, não percebem que a mente lhes fica
como aposento escuro, atulhado de elementos inúteis.
À força de
viciarem raciocínios, confundem igualmente a visão.
Enxergam
tormentas onde há paisagens celestes, montanhas de pedra onde o
caminho é gloriosa elevação.
De pequenos enganos a pequenos
enganos, formam o continente das grandes fantasias.
Daí por
diante, a recapitulação das experiências terrenas inclina-os, mais
fortemente, para a exigência animal e, chegados a esse ponto,
raros voltam ao dever sagrado, para considerar a grandeza das
divinas bênçãos.
Nosso interlocutor fez uma pausa e tornou:
– E o “desculpismo”? Nesse terreno de assistência espiritual,
verão, um dia, quantos pretextos são inventados pelas criaturas
terrestres por fugir ao testemunho da verdade divina, nas tarefas
que lhes são próprias.
Os mordomos da responsabilidade alegam
excesso de deveres, os servidores da obediência afirmam ausência
de ensejo.
Os que guardam possibilidades financeiras montam
guarda ao patrimônio amoedado, os que receberam a bênção da
pobreza de recursos monetários aconselham-se com a revolta.
Os
moços declaram-se muito jovens para cultivar as realidades sublimes,
os mais idosos afirmam-se inúteis para servi-las.
Os casados
reclamam quanto à família, os solteiros queixam-se da ausência
dela.
Dizem os doentes que não podem, comentam os sãos que
não precisam.
Raros companheiros encarnados conseguem viver
sem a contradição.
O senhor Bacelar parecia disposto a prosseguir, mas as duas
jovens foram buscá-lo, a ele e Aniceto, em nome de Alfredo, a fim de providenciar solução de problema intimo que lhes dizia
respeito.
CONTINUA AMANHÃ