CONTINUAÇÃO
entender quanto se
lhe debilitara o raciocínio de homem circunspecto, a menina identificava
a fase perigosa da partida infeliz a que se lançara e aturdia-se, ali, confundida
entre aflições e remorsos a lhe arpoarem o coração.
Compelidos pelas
circunstâncias à penetração dos assuntos em exame, assinalávamos as telas mentais
da moça, a se lhe derramarem do íntimo, irradiando-lhe a história.
Fizera-se querida
pelo maduro genro de Neves, sem dedicar-lhe outros sentimentos que não fossem
reconhecimento e admiração...
Todavia, agora que os
acontecimentos lhe impeliam a alma na direção de laços mais profundos, tremia
pelas indébitas concessões que lhe havia feito.
Remoia-lhe no
espírito as recônditas reminiscências de sua aventura afetiva, recapitulando
todos os sucessos pelos quais havia atraído o protetor experiente aos seus métodos
sutis de sedução, para concluir, assustada, que amava até à loucura aquele
rapaz franzino, que se lhe destacava do pensamento, através de cativantes
apelos da memória.
Dentro dela,
embatia-se guerra terrível de emoções e sensações.
Nemésio consolava-a,
formulando frases de paternal solicitude.
E, ao responder-lhe
às reiteradas perguntas, quanto ao choro intempestivo, a jovem adotou largo
processo de perfeita dissimulação, invocando problemas domésticos para articular
evasivas com que encobria a realidade.
Tentando esquivar-se
de si mesma, reportou-se a supostas agruras do lar.
Salientou exigências maternas,
falou em dificuldades financeiras, alegou fantásticas humilhações que colhia no
trato da irmã adotiva, mencionou incompreensões do genitor, em rixas constantes
nos círculos da família...
O interlocutor
reconfortou-a.
Que não se
amofinasse.
Não estaria a sós.
Partilhar-lhe-ia todos
os impedimentos e dissabores, fossem quais fossem.
Tivesse paciência.
O desenlace de
Beatriz, indicado para breves dias, ser-lhes-ia o marco fundamental da ventura
definitiva.
Exprimia-se Nemésio
em tom de súplica.
E talvez percebendo que
apenas à força de palavras não conseguiria subtraí-la aos soluços, arrancou de
pasta próxima um livro de cheques, colocando-lhe expressivo concurso amoedado
nas mãos que o lenço molhado umedecera.
A moça pareceu mais
comovida, exibindo no rosto a apreensão de quem se recriminava sem qualquer
justificativa de consciência, ao passo que ele a enlaçava, afetuoso.
No silêncio que sobreveio,
voltei-me para Neves, mas não consegui pronunciar palavra.
Não obstante
desencarnado, o amigo se me afigurava agora um homem positivamente vulgar da
Terra, que a revolta azedava.
Sobrecenho crispado
alterava-lhe a feição no desequilíbrio vibratório que precede as grandes crises
de violência.
Receava se lhe
transfigurasse a calamidade emotiva em agressão, mas sucedeu o imprevisto.
A súbitas, venerando
amigo espiritual penetrou a câmara.
Arrebatadora
expressão de simpatia marcava-lhe a presença.
Radioso halo
circundava-lhe a cabeça; no entanto, não era a luz suave a se lhe extravasar
docemente da aura de sabedoria que me impressionava e sim a substância invisível
de amor que lhe emanava da individualidade sublime.
Fitei-lhe os olhos,
de relance, com a ideia enternecedora de quem revia um companheiro, longamente
esperado por aflitivas saudades acumuladas no coração.
Fluidos calmantes
banhavam-me todo, qual se fosse visitado no âmago do ser por inexplicáveis
radiações de envolvente alegria.
Onde teria conhecido,
nas trilhas do destino, aquele amigo que se me impôs ao sentimento qual irmão
de velhos tempos?
Debalde vascolejei a
memória naqueles segundos inolvidáveis.
Num átimo, vi-me
recambiado às sensações puras da infância.
O emissário, que
estacara à frente de nós, não me fazia retomar simplesmente a segurança a que
me habituara, quando menino, ante os braços paternos, mas também ao carinho de
minha mãe, que nunca se me apartara do pensamento.
Oh! Deus, em que
forja da vida se constitui esses elos da alma?
Em que raízes de júbilo
e sofrimento, através das reencarnações numerosas de trabalho e esperança,
dívidas e resgates, se compõe a seiva divina do amor que aproxima os seres e
lhes transfunde os sentimentos numa só vibração de confiança recíproca?
Levantei meus olhos
de novo para o benfeitor que se avizinhava e fui compelido a sofrear a própria
emotividade a fim de não retê-lo instintivamente em arremessos de regozijo.
Erguemo-nos de
chofre.
Após cumprimentá-lo,
disse Neves, então desanuviado, a apresentar-me quase sorrindo:
– André, abrace o
irmão Félix...
Adiantou-se, porém, o
recém-chegado, ofertando-me um abraço e proferindo saudação calorosa, com o
evidente propósito de frustrar quaisquer elogios no nascedouro.
– Grande
contentamento o de vê-lo – disse, benevolente. –
Deus o abençoe, meu
amigo...
A comoção,
entretanto, imobilizava-me.
Não logrei arrancar do coração à boca as expressões
com que anelava pintar o meu enlevo, mas osculei-lhe a destra com a
simplicidade de uma criança, rogando-lhe mentalmente receber as lágrimas que me
caíam da alma, por mudo agradecimento.
Ocorreu, em seguida,
algo de inusitado.
Nemésio e Marina
transferiram-se, de repente, a novo campo de espírito.
Confirmei a impressão
de que a nossa curiosidade enfermiça e a revolta que dominava Neves até então
haviam funcionado ali por estímulos ao magnetismo animal a que se ajustavam os
dois enamorados, que nem de leve desconfiavam da minuciosa observação
a que se viam
sujeitos, porquanto bastou que o irmão Félix lhes dirigisse compassivo olhar
para que se modificassem, incontinenti.
A visão de Beatriz
enferma cortou-lhes o espaço mental, à feição de um raio. Esmoreceram-se lhes
os etos de paixão.
Assemelhavam-se ambos
a um par de crianças, atraídas uma para a outra, cujo pensamento se transfigura,
de improviso, ante a presença materna.
E não era só isso.
Não podia auscultar o mundo íntimo de Neves; contudo, de minha parte, súbita
compreensão me inundou a alma.
E se eu estivesse no
lugar de Nemésio?
Estaria agindo
melhor?
– Silenciosas
indagações se me incrustavam na consciência, impelindo-me o espírito a
raciocinar em nível mais alto.
Fitei o atribulado
chefe da casa, possuído de novos sentimentos, percebendo nele um verdadeiro
irmão que me cabia entender e respeitar.
Embora confessando a
mim mesmo, com indisfarçável remorso, a impropriedade da
atitude que assumira, momentos antes, prossegui estudando a
metamorfose espiritual que se processava.
Marina passou a
revelar benéfica reação, como se estivesse admiravelmente
conduzida em ocorrência mediúnica, de antemão preparada.
Recompôs-se, do ponto de vista emotivo, patenteando integral desinteresse
por qualquer forma de entretenimento físico, e falou, com
delicadeza, da necessidade de voltar aos cuidados que a doente exigia.
Nemésio, a refletir-lhe a renovada posição interior, não
ofereceu qualquer embargo, acomodando-se em poltrona próxima,
enquanto a jovem se retirava, tranqüila.
Reparei que Neves
ansiava conversar, desabafar-se; no entanto, o benfeitor, que nos
granjeara os corações, apontou o esposo de Dona Beatriz e
convidou:
– Meus amigos, nosso
Nemésio está seriamente enfermo, sem que ainda o saiba.
Ignoro se já lhe notaram a deficiência orgânica...
Procuremos
socorrê-lo.