CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 27
O CALUNIADOR
Enquanto o administrador se entregava a conversações educativas
com os numerosos subordinados, Aniceto chamou-nos a
pequena construção isolada e falou:
– Vejamos outro ensinamento.
Avançamos na direção de algumas câmaras separadas.
Nosso instrutor abriu uma porta e vimos um louco, que parecia
fundamente irritado.
Fixou em nós o olhar inexpressivo e
gritou estentoricamente.
Aniceto, porém, adiantou-se e cumprimentou-
o, atencioso:
– Como vai, Paulo?
As palavras, ao que senti, emitiram certo fluxo magnético e o
enfermo revelou profunda modificação. Aquietou-se de súbito.
Sentou-se mais calmo, embora trêmulo e espantadiço.
– Tem sentido melhoras, Paulo? – perguntou nosso orientador,
bondosamente, tocando-o no ombro.
Ao contacto pessoal de Aniceto, o doente mostrou algum raciocínio
e respondeu:
– Vou melhorando, graças...
A vista da expressão reticenciosa, o instrutor falou em tom
firme, como se desejasse auxiliar-lhe a vontade enfraquecida:
– Termine!
O doente fez enorme esforço e concluiu:
– Graças a Deus!
Anotando-lhe o sofrimento e a indecisão, lembrei dos enfermos
das Câmaras, aos quais prestava Narcisa ampla colaboração afetuosa. Percebendo-me as íntimas considerações, disse o mentor
esclarecido:
– Vêem a diferença entre os que dormem, os que estão loucos
e os que sofrem? Em “Nosso Lar” não temos dos primeiros, e os
que se encontram desequilibrados, nos serviços da Regeneração,
sentem, na maioria, angústias cruéis.
É necessário reconheçamos
que os que gemem e sofrem, em qualquer parte, estão melhorando.
Toda lágrima sincera é bendito sintoma de renovação.
Os
escarnecedores, os ironistas e os perturbados que não registram a
dor são mais dignos de piedade, por permanecerem embotados em
estranha rigidez de entendimento.
E, designando o enfermo sob nossos olhos, afirmou:
– Paulo é um doente a caminho de melhora positiva.
Ainda
não possui a consciência exata da situação, mas já chora, já padece
com as recordações do passado triste.
Recebi o esclarecimento com atenção. Lembrei-me que, de
fato, os doentes conduzidos pelos Samaritanos a “Nosso Lar”, em
serviço diário, eram grandes sofredores. Os que não acusavam
padecimentos atrozes, revelavam estranho pavor das sombras.
A
única entidade que ali observara, com absoluta inconsciência da
própria miséria, fora a de pobre vampiro que não encontrara guarida
nas Câmaras de Retificação.
Nosso instrutor, sem qualquer preocupação de transformar o
doente em cobaia, recomendou, afetuoso:
– Concentrem no Paulo a capacidade de visão!
Estimulado pela experiência anterior, fixei nele todo o meu
potencial de observação.
Aos poucos, caracterizou-se a meus olhos a sua tela mental,
parecendo formada em compacta sombra noturna.
Com surpresa,
divisei formas diversas que se movimentavam.
Vários vultos de
mulher ali surgiam, despertando-me enorme admiração.
Entre eles, reparei o de Ismália como que doente, enfraquecida, ansiosa.
Alguns homens passavam, igualmente, mostrando desesperação, e
notei, nessas imagens, o próprio Alfredo a evidenciar cansaço e
extrema velhice prematura.
Vozes misteriosas se faziam ouvir.
Sobre Paulo choviam maldições e blasfêmias. As mulheres pareciam
acusá-lo, clamorosamente; os homens davam idéia de perseguidores
ferozes, ocultos no mundo interior daquele enfermo
estranho.
Observando, porém, que os vultos de Ismália e Alfredo
se movimentavam naquele painel escuro, não pude sofrear a
curiosidade e interrompi o minucioso exame, voltando a conversar
com o nosso orientador, perguntando:
– Como explicar o fenômeno? Estou assombrado!
Antes, porém, que pudesse expressar maiormente o espanto
que me dominara, Aniceto ajuntou:
– Já sei.
Admira-se da presença de Ismália e do seu marido
nas reminiscências do enfermo.
E, ante a minha perplexidade, continuou:
– Lembram-se da história de Alfredo?
Temos diante de nós o
falso amigo que lhe arruinou o lar.
Paulo, contudo, não somente
cometeu a ingratidão, como envenenou o espírito doutras senhoras,
traiu outros amigos e destruiu a alegria e a paz doutros santuários
domésticos.
Observando Ismália aflita e Alfredo desesperado,
nas recordações dele, vemos as imagens criadas pelo caluniador,
para seus próprios olhos.
Nossos amigos deste Posto evoluíram,
transpuseram a fronteira da mágoa, escaparam aos monstros
do ódio, vestem-se hoje de luz; no entanto, Paulo os vê como
imagina, para escarmento de suas culpas.
O criminoso nunca
consegue fugir da verdadeira justiça universal, porque carrega o
crime cometido, em qualquer parte.
Tanto nos círculos carnais,
como aqui, a paisagem real do Espírito é a do campo interior.
Viveremos, de fato, com as criações mais intimas de nossa alma.
Reparando-me a dificuldade para compreender de pronto, Aniceto
prosseguiu, depois de pequeno intervalo:
– Para melhor elucidação, recordemos a crucificação do Mestre
Divino.
Sabemos que Jesus penetrou na glória sublime logo
após a suprema dor do Calvário; entretanto, estamos ainda a vê-lo
freqüentemente pendurado na cruz, martirizado pelos nossos
erros, flagelado pelos nossos açoites, porque a visão interior a isso
nos compele.
A condenação do Mestre foi um crime coletivo e
esse crime estará conosco até ao dia em que nos vestirmos na
divina luz da redenção.
O esclarecimento não poderia ser mais lúcido.
Sentia-me diante
de nobre revelação.
– O dever possui as bênçãos da confiança, mas a dívida tem
os fantasmas da cobrança – tornou o generoso mentor, com grave
acento.
Readquirindo a serenidade, interroguei:
– Mas Paulo veio ter casualmente a este Posto?
– Não – respondeu Aniceto, atencioso –; foi trazido pelo próprio
Alfredo, que se sentiu necessitado de disciplinar o coração.
Nosso amigo, que hoje dirige esta casa de amor, desprendeu-se do
mundo, sob intensa vibração de ódio e desesperação.
Sofreu muitíssimo
nos primeiros tempos, embora nunca fosse abandonado
pela dedicação da abnegada companheira.
Alfredo, todavia, não
pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das baixas manifestações
do rancor. Socorrido em “Campo da Paz”, compreendeu
as próprias necessidades.
Tão logo adquiriu algum mérito, intercedeu
pelo amigo infiel, buscou-o em recanto abismal, e tão nobremente
se dedicou ao aperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou
a posição de administrador de um Posto de Socorro.
Trouxe o tutelado em sua companhia e trata-o como irmão, atualmente.
Não julguem que o marido de Ismália conseguiu essa vitória espiritual tão somente pelo fato de desejá-la.
Ele desejou-a,
procurou-a, alimentou-a e, agora, permanece na realização.
Há
muitos anos conversa com Paulo, diariamente.
Nos primeiros
tempos, aproximava-se do enfermo, como necessitado de reconciliação;
depois, como pessoa caridosa; mais tarde adquiriu entendimento,
comparando situações; em seguida, sentiu piedade; logo
após, experimentou simpatia e, presentemente, conquistou a verdadeira
fraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex-inimigo.
Fazendo pequena pausa, voltou a dizer, espirituosamente:
– Como vêem, o ensinamento de Jesus, quanto ao “batei e abrir-se-vos-á”, é muito extenso.
No plano da carne, insistimos à
porta das coisas exteriores, procurando facilidades e vantagens;
mas, aqui, temos de bater à porta de nós mesmos, para encontrar a
virtude e a verdadeira iluminação.
Vicente, que até então se conservara calado, indagou:
– Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefinidamente?
Nosso instrutor fez um gesto significativo e concluiu:
– Voltará breve à Terra. Ismália tem feito a seu favor inúmeras
intercessões e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se
sinta humilhado, com o beneficio das próprias vítimas.
Uma das
irmãs, por ele caluniada no mundo, já voltou ao círculo carnal, e a
abnegada esposa de Alfredo pediu-lhe que recebesse Paulo como
filho, tão logo seja oportuno.
CONTINUA AMANHÃ
Nenhum comentário:
Postar um comentário