OS HOMENS QUE DORMEM
Seguimos
através de longas filas de arvoredo acolhedor, rumo às vastas edificações que
obedeciam a linhas arquitetônicas singulares. Sem que eu pudesse explicar o
fenômeno, as luzes diminuíam progressivamente. Que teria acontecido? Vicente e
eu nos entreolhamos, assustados.
Alfredo,
Aniceto e os demais, todavia, caminhavam sem surpresa.
A
serenidade deles tranquilizava-me o íntimo, embora o espanto insofreável.
Mais
alguns passos, atingimos os pavilhões diferentes, que se estendiam em área
superior a três quilômetros, pelos meus cálculos.
Lá
dentro, contudo, as sombras se fizeram mais densas.
Conseguia
distinguir, vagamente, os quadros interiores, observando que se tratava, a meu
ver, de espaçosas enfermarias com teto sólido, mas semiabertas ao longo das
paredes altas, dando livre passagem ao ar.
Dezenas
de operários, devotados e operosos, seguiam-nos em absoluto silêncio.
Alfredo
era o único a falar, notando-se, contudo, que se fizera extremamente discreto
nas palavras.
Tudo
isso me dava a impressão de haver penetrado um cemitério escuro, onde os
visitantes fossem obrigados a guardar todo o respeito aos mortos.
Com
estranheza, notei que um dos servidores entregara ao chefe do Posto pequenina
máquina, que Alfredo nos deu a conhecer gentilmente, explicando:
–
Este é o nosso aparelho de sinalização luminosa.
Estamos
no centro dos pavilhões a que se recolhem irmãos ainda adormecidos.
Temos
aqui, presentemente, quase dois mil.
Os
numerosos cooperadores dirigiam-se em ordem para a zona de serviços que lhes
competiam.
Depois
de pequena pausa, falou o administrador com firmeza: – Iniciemos o trabalho de
assistência.
Ao
primeiro sinal luminoso de Alfredo, acenderam-se numerosas lâmpadas elétricas
e, então, dominando, a custo, a primeira impressão de horror, vi extensas filas
de leitos ao rés do chão, ocupados todos por pessoas mergulhadas em profundo
sono.
Muitos
tinham o semblante horrendo.
Eram
muito poucos os que traziam as pálpebras cerradas, parecendo tranquilos.
Em
quase todos, estampavam-se lhes nos olhos, aparentemente vitrificados, o
extremo pavor e o doloroso desespero da morte.
Cadavérica
palidez cobria-lhes a face. Recordando a literatura antiga, pensei nos velhos
túmulos egípcios.
Tínhamos,
diante de nós, centenas de múmias perfeitas.
Raríssimos
pareciam dormir um sono natural.
Aproximando-se
de nós outros, Alfredo falou a Aniceto, em particular:
–
Infelizmente, não podemos atender a todos. – Por quê? – indagou nosso
orientador, comovido.
–
Estamos aguardando pessoal adestrado. Tenho aqui a colaboração de oitenta
auxiliares para este gênero de serviço; entretanto, não pode cada qual atender
a mais de cinco doentes de uma só vez.
A
vista disso, dos nossos mil novecentos e oitenta abrigados, separei os
quatrocentos mais suscetíveis de próximo despertar, a fim de submetê-los ao
tratamento intensivo. – E os demais?
–
Recebem alimento e medicação mais densos uma vez por dia.
Aniceto
calou-se, pensativo.
Profundamente
tocado pelo que via, inclinei-me instintivamente para o abrigado mais próximo,
tentando examinar lhe o estado fisiológico.
Identifiquei
o calor orgânico, a pulsação regular e os movimentos respiratórios, embora
verificasse a extrema rigidez dos membros, como que mergulhados em imobilidade
cataléptica.
Indescritível
impressão apoderou-se de mim.
Levantei-me
assustado, dirigi-me a Aniceto com a máxima discrição, e interroguei:
Explicai-me, por Deus! Que vemos aqui?
Estamos,
acaso, na moradia da morte, depois da morte?
O
instrutor sorriu, complacente, e explicou em voz quase imperceptível:
–
Sim, André, este sono é, verdadeiramente, avançada imagem da morte.
Aqui
permanecem, com a bênção do abrigo, alguns milhões dos nossos irmãos que ainda
dormem.
São
as criaturas que nunca se entregaram ao bem ativo e renovador, em torno de si,
e, mormente os que acreditaram convictamente na morte, como sendo o nada, o fim
de tudo, o sono eterno.
A
crença na vida superior é atividade incessante da alma.
A
ferrugem ataca a enxada ociosa. O entorpecimento invade o Espírito vazio de
ideal criador.
Os
que, nos círculos carnais, homens e mulheres, crêem na vida eterna, ainda que
não sejam fundamentalmente cristãos, estão desenvolvendo faculdades de
movimentação espiritual e podem penetrar as esferas extraterrenas em estado
animador, pelo menos quanto à locomoção e juízo mais ou menos exato.
No
entanto, as criaturas que perseveram em negação deliberada e absoluta, não
obstante, por vezes, filiadas a cultos externos de atividade religiosa, que
nada veem além da carne nem desejam qualquer conhecimento espiritual, são
verdadeiramente infelizes. Muitos penetram nossas regiões de serviço, como
embriões de vida, na câmara da Natureza sempre divina.
Um
amigo nosso costuma designá-los por fetos da espiritualidade; entretanto, a meu
ver, seriam felizes se estivessem nessa condição inicial.
Temos
a certeza, porém, de que muitos se negaram ao contato da fé, absolutamente por
indiferença criminosa aos desígnios do Eterno Pai.
Dormem,
porque estão magnetizados pelas próprias concepções negativistas; permanecem
paralíticos, porque preferiram a rigidez ao entendimento; mas dia virá em que
deverão levantar-se e pagar os débitos contraídos.
Eis
porque os considero sofredores.
Primeiramente,
demoram no sono em que acreditaram, mais tarde acordam; porém, a maioria não
pode fugir à enfermidade e à perturbação, como acontece aos irmãos dementados,
que vimos inda há pouco.
Grande
o meu assombro. Como Vicente se aproximasse, também, para ouvi-lo, falou
Aniceto, esclarecendo a nós ambos:
–
A fé sincera é ginástica do Espírito. Quem não a exercitar de algum modo, na
Terra, preferindo deliberadamente a negação injustificável, encontrar-se-á mais
tarde sem movimento. Semelhantes criaturas necessitam de sono, de profundo
repouso, até que despertem para o exame das responsabilidades que a vida
traduz. Observando que o nosso orientador se esquivava a comentários longos,
para que pudéssemos seguir, de mais perto, os trabalhos de assistência, calei
as muitas indagações que me escaldavam a mente. Com exceção de algumas senhoras
que permanecia junto de Ismália, todo. os servidores se mantinham em posição de
vigilância, ao pé dos grupos mumificados.
A
luz artificial iluminava os leitos, que se perdiam de vista, mas observei que
nenhum dos albergados reagia à intensa claridade que se fizera.
Continuavam
rígidos, cadavéricos, prostrados. Notei, então, que Alfredo começou a mover o
aparelho de sinalização, para emitir as ordens de serviço. Cada sinal
determinava operação diferente.
Vi
os servidores do Posto distribuírem pequenas porções de alimento líquido e
medicação bucal, em profundo silêncio.
Em
seguida, forneceram reduzidas quantidades de água efluviada aos infelizes, com
exceção, porém, de muitos que pareciam preparados a receber, tão somente, caldo
e remédio.
Dois
terços dos quatrocentos abrigados em tratamento receberam passes
magnéticos.
Alguns
poucos receberam aplicações do sopro curador.
Todos
os movimentos do trabalho eram transmitidos pela sinalização luminosa, partida
das mãos do administrador, que parecia interessado na manutenção do máximo
silêncio.
Impressionado
com o que via, perguntei ao orientador, em voz baixa, a razão de alguns
enfermos não terem sido beneficiados com a água e com o socorro de forças
novas, através do passe e do sopro vivificante.
Aniceto,
todo bondade, inclinou-se aos meus ouvidos, com a ternura de um pai ansioso por tranquilizar o filhinho inquieto, e falou:
–
Cada um na vida, meu caro André, tem a necessidade que lhe é peculiar. Aqui,
compreendemos com amplitude esse imperativo da Natureza.
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