sábado, 5 de janeiro de 2013

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

Demandei o Flamengo, ouvindo a senhora Torres e admirando as reservas de sensibilidade e meiguice que lhe vibravam na alma de escol. Exteriorizava o júbilo de ave recém-liberta. Entretanto, logo após recebidos por Moreira e Cláudio, ao divisar o marido desfigurado na postura dos paralíticos, empalideceu, debruçando-se na cadeira de rodas que o albergava. Enleou-se a ele, que lhe não assinalava as carícias, a crivá-lo de perguntas lastimosas...
Por que mudara tanto em dois anos apenas? que lhe acontecera para se relegar a semelhante ruína física? que fizera? por que? por quê?...
Escutando tão-somente o ruído de Marina e Dona Justa, nas atividades rotineiras, experimentava-se Nemésio tocado de fundas reminiscências... Não conseguia explicar a si mesmo a razão das idéias que lhe borbulhavam da cabeça, mas pensava em Beatriz.
Reconstituía-lhe a imagem no imo do ser. A esposa!... Ah! – refletia o doente, em cujo espírito a afasia requintara a vida interior – se os mortos pudessem amparar os vivos, segundo a crença de tantos, certamente que a velha companheira se compadeceria dele, estendendo-lhe as mãos!... Rememorava-lhe a compreensão silenciosa, a dignidade irrepreensível, a bondade, a tolerância!...
Ignorando que respondia, mecanicamente, às inquirições da esposa, amarrotada de angústia, ali colada a ele, revisou todos os acontecimentos posteriores à desencarnação dela, como que a lhe prestar severas contas. Gilberto, Marina, Márcia e Cláudio eram os protagonistas principais daquelas cenas que a memória perfeitamente lúcida lhe traçava nos painéis relampagueantes da aura, exibindo para a companheira e para nós outros, qual num filme pujante, a verdade toda, até o instante em que se precipitara no crime. Se Beatriz estivesse no mundo – concluía –. estaria isento de aflições e tentações. Junto dela, teria recolhido defesa, orientação.
Profundas saudades lhe acicatavam a alma... Recompunha na imaginação os sonhos da juventude, o casamento, os projetos de ventura concentrados em Gilberto pequenino... Movimentou dificilmente a mão esquerda para enxugar o pranto que lhe encharcava o rosto, sem saber que a esposa o auxiliava, soluçando...
Neves, apreensivo, tentou soerguer a filha que se estirara no pavimento, à maneira de mãe torturada, incapaz de alijar do peito um filho semimorto. Em vão pronuncIou palavras de encorajamento, exortações à paciência, conceitos evangélicos, promessas de futuro melhor... A filha magoada respondeu que amava Nemésio, que preferia ser amarrada num catre, ao lado dele, a separar-se de novo. Agradecia o devotamento de que andara cercada no “Almas Irmãs”; entretanto, pedia vênia para considerar que o esposo sofria. Como descansar, lembrando-lhe os suplícios? Jesus também – ponderava chorosa –, carregara a cruz por amor à Humanidade...
Como fugir de suportar diminutas contrariedades na Terra, amenizando o martírio do homem a quem adorava? A doutrina cristã ensinara-lhe que Deus é um pai compassivo e um pai compassivo não aprovaria ingratidão e abandono.
O genitor, que não contava com a imprevista resistência, disse-me à socapa que Torres pai nada fizera para merecer semelhante abnegação e inclinava-se ao estouro, mas sugeri-lhe calma.
Censuras agravariam a situação sem proveito.
Interferi.
Salientei para a senhora Torres que o filho se preparava a dar-lhe uma neta, que a conformidade da parte dela, no tocante às provações do marido, ser-nos-ia uma bênção.
Acatando-me a solicitação, ergueu-se, contrafeita, acompanhou-nos até Marina, cuja história real na família passara a conhecer pelas memorizações do enfermo... Alma generosa, porém, compreendeu as ligações havidas e, fitando Cláudio, que lhe perdoara ao esposo tantas injúrias, beijou-lhe a filha com enternecimento de mãe. Abraçou Dona Justa, com simpatia, e, em seguida, retornou em nossa companhia ao quarto de Nemésio, onde nos compartilhou a oração e o trabalho de socorro magnético. Pareceu reconfortar-se, sobremodo, quando viu Gilberto em casa para o jantar, encantando-se ao notar que o filho buscara o doente para a refeição, após afagar-lhe a testa, acompanhando o gesto afetuoso com expressões de bom ânimo e carinho; entretanto, quando Neves falou em regressar, a devotada mulher enrodilhou-se ao marido e, desligada por nós, quase à força, revelava sinais de alienação começante.
Beatriz desceu do prédio abatida, muda. No intuito louvável de reaquecer-lhe o coração, Neves, que conhecia somente por alto a bancarrota comercial do genro, propôs se lhe realizasse naquela hora o desejo de uma visita, ainda que rápida, à antiga moradia. A filha, agora apática, não contestou. Obedeceu, automaticamente.
A noite caíra de todo, quando abordamos a vivenda que se reduzira a um casarão às escuras. A Lua plena assemelhava-se a uma lâmpada enorme que estivesse conscientemente recolhida a distância, envergonhada de apresentar à dona do palacete uma visão assim funesta.
O genitor, arrependido da instigação infeliz, diligenciou recuar, mas não pôde... Dolorosamente magnetizada pelas próprias recordações, Beatriz avançou apressada, à procura dos tesouros domésticos; todavia, não encontrou, nos lúgubres recintos, senão poeira e sombra do oásis familiar que construíra... Além de tudo, o elegante domicílio, condenado a leilão, transformara-se em valhacouto de malfeitores desencarnados, aos quais se reconhecia absolutamente sem forças para expulsar... A desesperada criatura correu de peça em peça, de susto em susto, de grito em grito, até que se rojou de borco, nos tacos da espaçosa câmara que lhe merecia a preferência, pronunciando frases desconexas...
Beatriz enlouquecera.

CONTINUA AMANHÃ

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