sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

das famílias Neves e Torres e até mesmo o piano e as jóias de Dona Beatriz jaziam perdidos na voragem. Apenas Olímpia, antiga companheira, vinha até ali duas vezes por dia, a fim de prestar ligeira assistência ao enfermo, que, embora perfeitamente lúcido, não conseguia articular palavra, em vista das alterações nos centros nervosos. E isso tudo – rematava o informante, desencantado – há menos de uma semana...
Condoído, ali aguardei a noite.
Vi quando Gilberto e Marina atravessaram o vestíbulo, seguidos de Percília, Moreira e Cláudio, tomados de surpresa dolorosa.
Imaginando-se sozinhos, o jovem bancário e a esposa não conseguiam dominar as exclamações de assombro, até que à frente do leito, cuja solidão o lustre feérico parecia exagerar, se prosternaram em lágrimas. Nemésio reconheceu-os. Debalde intentou soerguer a carcaça dorida. Quis falar, mas não pôde, apesar do supremo esforço despendido. – Pois é o senhor que encontramos assim, papai? – arfou Gilberto em desconsolo.
Cabeça trêmula, o interpelado apenas engrolava: – Ah, ah, ah, ah, ah!...
Nós, porém, que lhe registrávamos os pensamentos, notamos, comovidos, que ele, reacomodado ao equilíbrio próprio, implorava aos filhos benevolência, compaixão...
Contemplou a nora pelo véu de pranto e lastimou na linguagem inarticulada do cérebro: – “Marina!... Marina!... sou um infeliz.... Perdão, pelo amor de Deus!... Perdão pelas cartas afrontosas, perdão pelo meu crime!... Eu estava louco, no momento em que arrojei o automóvel no corpo de seu pai!... Diga, diga se ele morreu... Perdão, perdão!...” A boca franzida, no entanto, somente repetia:

– Ah, ah, ah, ah, ah!...
Para os dois circunstantes, a terrível confissão paterna era simplesmente longa série de interjeições sem sentido.
Vimos então que Nogueira avançava realmente para o bem que se comprometera a dignificar. Somente naquela hora vinha a saber quem fora o autor do atentado que lhe impusera a morte...
Longe, porém, de pedir-nos orientações ou conselhos, recordou, instintivamente, outra noite, além daquela em que perdera a existência...
A noite na pensão de Crescina, cujas sombras lhe haviam acobertado os ultrajes à filha, compelindo-a ao desastre fatal...
Viu Marina, ajoelhada e, obedecendo aos ditames da própria alma, caiu genuflexo, abraçando-se a ela e, qual se ocupasse o íntimo da jovem senhora, atenazada de sofrimento moral, fê-la buscar a destra de Nemésio para beijá-la com a reverência que os filhos devem aos pais.
O enfermo, tocado no coração por semelhante gesto de respeitosa ternura, tartameleava sons ininteligíveis, implorando mentalmente: – “Perdão!... perdão!...”
Cláudio, testemunhando corajosa humildade, levantou-se, de súbito, e, erguendo os olhos para o alto, clamou em pranto: – Deus de Imensa Bondade, perdão para mim também!...
Naquela mesma noite, uma ambulância atendia à hospitalização de Nemésio que, após alguns dias de tratamento, sempre custodiado pelos filhos, subia, em cadeira de rodas, no prédio do Flamengo, onde passou a habitar, mudo e inerme, sob os desvelos da nora e incessantemente amparado por Nogueira, no aposento que pertencera àquele que perseguira por rival e que se lhe erigia agora por denodado guardião.
Os êxitos morais de Cláudio, comentados com admiração por alguns amigos no “Almas Irmãs”, estabeleceram para o irmão Félix um problema grave, embora sem qualquer importância na feição exterior. Dona Beatriz, ciente de que o genitor de Marina, já desencarnado, obtivera licença para se demorar ao pé dos familiares em missão de auxilio, queria também, pelo menos, rever o esposo e o filho. Cientificara-se, de maneira superficial, quanto aos acontecimentos desagradáveis em que se envolviam os entes queridos. Muito longe, porém, de abranger-lhes toda a extensão, alegava essa circunstância para reforçar o propósito. Peça viva na engrenagem doméstica, não devia alhear-se, argumentava. Se Marina desposara Gilberto, aceitava-a por filha, e se os pais mantinham contendas, que não conhecia em todos os pormenores, nada mais justo que partilhar as dificuldades, oferecendo mediação.
Estabelecida a pretensão, negou-se Félix a atender.
Dona Beatriz recorreu a Neves, mobilizou a afeição de Sara e Priscila e voltou à carga; entretanto, o diretor se conservou irredutível. Neves, porém, que não se curara, de todo, da impulsividade, destacava o caráter aparentemente razoável do pedido, e colocou tantas relações e tantos empenhos no assunto, que o instrutor não encontrou outra alternativa senão aderir. Conquanto preocupado, determinou providências para que se efetuasse a excursão. Instado a prestigiar Dona Beatriz com a sua presença, escusou-se, delicado, conferindo, àquele que lhe fora genitor, ampla liberdade de ação e tempo. Particularmente, todavia, recomendou-me fizesse companhia aos dois viajantes, pai e filha. Que eu cooperasse com Neves na solução de qualquer emergência. Pressentia obstáculos, receava riscos.
Dona Beatriz, entusiasmada na contemplação do Rio, embora soubesse que Nemésio passara a residir com o filho, não apenas ansiava por abraçá-lo, como também suspirava reavistar a antiga moradia. Queria sorver o perfume da felicidade que tivera, exclamava, contente. E o pai, satisfeito, incentivava-lhe todos os programas.
Acompanhando a dupla, não me permitia opor embargos.

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: