domingo, 9 de dezembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

Beatriz, cuja grandeza de alma apenas agora – dizia, entusiasmada –, começava a conhecer. E, finalmente, propôs um ajuste de providências pelas quais se transferisse a menina para um sanatório em São Paulo, onde estagiasse, no tratamento devido, por alguns meses. Bastava que ele, Cláudio, concordasse. Nemésio, em sinal de gratidão da firma pelos serviços prestados por Marina, custearia todas as despesas.
Cláudio escutou, humilde, e obtemperou que a situação talvez não fosse tão grave, que a palavra “meses” o alarmava. Acreditava que a filha, conjugando medicação do corpo e da alma, lograria recuperar-se em menos tempo.
Argumentou, sensato. Demonstrou, sem afetação de virtude, que não lhes seria lícito abandoná-la, destacou que a proteção dinheirosa significava muitíssimo, principalmente naquela hora em que os cuidados exigidos por Marita lhe haviam esgotado as reservas, mas admitia que a filhinha conturbada reclamava deles carinho, dedicação.
Após enfileirar judiciosos apontamentos que a interlocutora recebia, contrafeita, levantou para ela os olhos súplices e convidou-a, com dignidade, a abraçar, junto dele, uma existência nova.
Vida de harmonia, de construção recíproca. Sincero, confiou-lhe todos os propósitos diferentes que edificara naqueles dias de luta, dos quais emergira transformado. Descerrava-lhe o íntimo. Fizera-se espírita-cristão. Sentia-se outro homem. Participou-lhe que, entre ele e o passado, erigia-se a fé por barreira de luz. Aspirava, agora, à bênção do lar, à tranqüilidade da família... Comprometiase a adotar conduta reta, ser-lhe-ia companheiro leal. Não lhe constrangeria o ânimo a aceitar-lhe as idéias; no entanto, anelava mostrar-lhe quanto a amava... Disse-lhe que vinha orando, desde a véspera, rogando a Jesus o inspirasse, no sentido de revelar-se a ela, abertamente, para que ela, Márcia, lhe perdoasse e o compreendesse...
Concedia-lhes Deus o futuro à frente. Penitenciar-se-ia quanto aos erros cometidos, dispunha-se a testemunhar-lhe fidelidade, afeição...
A senhora, porém, aprumou-se de um salto, plantou as mãos na cintura, numa risada de escárnio, e zombeteou:
– Sim, senhor! o diabo, depois de velho, se fez ermitão!. .. sempre a mesma história!...
E aditou com ar de troça: – Era só o que faltava! Você espírita!... Eu logo vi!... Juro que no hospital você já estava nessa baboseira. Aquele jeito de conversar, quando Nemésio e eu fomos lá, aquele modo de tratar Marita!... Ora, ora!... quem teria hipnotizado você dessa forma?...
O marido, arrancado à esperança que alentava no sentido de se reconciliarem para uma experiência doméstica respeitável e batido na fé que principiava a entesourar, objurgou, francamente ofendido:
– Mas você conhece o Espiritismo?
Márcia, obsidiada, com a disposição de quem procura deixar o carreiro, trilhado desde muito, para arrojar-se a outro caminho, revidou, irônica:
– Perfeitamente, conheço sim! Quando Aracélia morreu, andei conversando nisso com amigas e acabei desistindo. Espiritismo é um movimento de pessoas, querendo sentar cachorros no banco e apanhar estrelas como se fossem laranjas!... Bobagem!
Nós todos no mundo somos canalhas!... Eu sou, você é, os outros são!... Os espíritas me parecem cães querendo sentar na poltrona da falsa virtude. Asneira deles! Temos de rolar é no chão mesmo...
– Eu não penso assim...
– Pois se você pensa de maneira diversa e se é verdade tudo o que você me falou, é pena que a mudança chegue tão tarde!...
Venho de Petrópolis, justamente para dizer a você que entre nós tudo está acabado... Agora, meu velho, faça a sua vida, que eu vou me arranjar...
E continuou alegando que, depois de sofrer tantos anos, naquele apartamento que apelidava por “minha gaiola”, iria fazer ninho certo. Esperaria tão-somente as melhoras de Marina, a fim de promover o desquite. Se ele, Cláudio, não assinasse, que escolhesse rumo. Declarava-se farta. Queria liberdade, sossego, distância...
Nogueira escutava, triste.
Repunha no pensamento as instruções de Agostinho e Salomão, lembrava Marita, reconstituía na memória os textos lidos.
Sim, concluía mentalmente, aquele matrimônio destruído era obra dele. Recolhia o que semeara. Uma filha morta, outra doente e a esposa obsessa... Seara de espinhos para quem os plantara.
Fitou Márcia, aplicada ao sarcasmo, e reconheceu que ambos eram comparáveis a dois náufragos na viagem do mundo, com a diferença de que ele aceitara refúgio no salva-vidas da fé, ao passo que ela preferia mergulhar no desconhecido. Por minutos amargos, ouviu-lhe, pacientemente, os remoques, até que o “homem antigo” ressurgiu nele.
Impossível agüentar tanto insulto – monologou de si para
consigo. A doutrina restauradora que abraçara não se destinava a criar homens indignos. Doutrina de compreensão e benevolência, mas também de limpeza e respeitabilidade. Não se julgava habilitado a receber tanta injúria sem revolta. Indignou-se. Quis reagir, esbravejar, espancá-la... Entretanto, ao querer deslocar a destra, a fim de agredi-la, a noção de responsabilidade acordou-se-lhe, de repente... Recordou o hospital e reviu na imaginação a pequena mão gelada que o saudava, num gesto de perdão, no momento do adeus... Os dedos submissos e frios da filha desencarnada estavam nas mãos dele, relembrando-lhe que devia perdoar como tinha

CONTINUA AMANHÃ

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