domingo, 30 de dezembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

Novembro seguia, cálido. Aqui e ali, na paisagem, transeuntes encarnados e desencarnados, sem novidades que chamassem atenção...
Após o descanso, a volta.
Pai e filha, à beira da pista asfaltada, esperavam vez, notando os carros que desfilavam, velozes.
Locomovia-se Marina, pesadamente; em razão disso, reconhecido o sinal de passagem livre, iniciaram a travessia com vagar; no entanto, o imprevisto aconteceu.
Automóvel a deslocar-se de longe, com lentidão, adquiriu estranho movimento, qual se perdesse todos os controles e, quebrando as regras do trânsito, precipitou-se sobre pai e filha, em tremenda impulsão. Nogueira, rápido, dispôs simplesmente de um
segundo para arredar a filha e foi arremessado a distância, depois de sofrer o impacto da máquina à altura do tronco...
Percília, Moreira e eu, assombrados, vimos Nemésio ao volante, com a fisionomia de louco, mantendo o auto, qual avião em decolagem, desnorteando guardas e populares, que, debalde, se dispunham a segui-lo.
Marina, em gritos, foi imediatamente escorada por senhoras que acudiram, emocionadas. Sobreveio a agitação. Motociclistas dispararam no encalço do agressor. Funcionaram telefones próximos para o socorro urgente. O bolo crescia, em torno de Nogueira, que tombara em decúbito ventral. Bradava-se contra choferes desalmados, contra jovens inconscientes...
Cláudio, tonto a princípio, recuperou os sentidos e virou-se com dificuldade. Superando a resistência do corpo que se tornara rígido, conseguiu sentar-se, apoiando-se nos dois braços a se retesarem, forçando as mãos espalmadas no solo.
A filha!... Ansiava enxergá-la, sabê-la viva, salva!... O sangue pingava-lhe da boca, mas, sobrepondo-se à curiosidade dos circunstantes, perguntou por ela. Marina, firmando-se em benfeitoras anônimas, arrastou-se até ele. Não sofrera sequer um arranhão; todavia, aturdira-se. Receava desfalecer. No entanto, fitando o genitor a dominar-se para insuflar-lhe segurança, cobrou forças.
Cláudio ensaiou um sorriso quase alegre, que o sangue entristecia, e rogou-lhe calma. Ferira-se um pouco. Apenas isso, explicava.
Problema simples que a hospitalização de algumas horas viria resolver. Afligia-se tão-somente por ela. Ficasse boazinha, suplicou.
Confiasse em Deus. Tudo terminaria bem. Solicitou a presença do genro, que um dos cavalheiros presentes se prontificou a buscar, no endereço da Glória, que ele mesmo forneceu. Intentou prosseguir conversando, para consolo da filha, mas notou que as energias lhe escapavam...
Percília, acomodada no chão, resguardava-o em lágrimas. Desencarnados amigos que procediam das vizinhanças, satisfazendonos o apelo, protegiam a gestante, dispensando-lhe auxilio. Moreira e eu diligenciávamos fortificá-lo, conjugando recursos magnéticos.
Em derredor, a balbúrdia...
O acidentado, contudo, alheou-se, em reflexão.
Novembro... Lembrava-se de que dois anos jaziam transcorridos sobre o desastre no qual supunha haver Marita procurado a morte. Ela tombara perto do mar, ele também... Ambos atropelados por automóvel. Contemplou o céu e recordou que a filha caíra quando as estrelas se apagavam, ele, quando as estrelas se acendiam...
Fixou Marina que chorava, baixinho, e verificou que as lágrimas represadas lhe constringiam a garganta. Queria tanto viver para aquela filha, aguardava com tanta ternura a criancinha por nascer!... Nisso, sentiu que se lhe reconstituía na mente a visão em que se reconhecera visitado por Marita, e as palavras da prece que formulara lhe vieram, uma a uma, ao ádito da memória.

“Senhor, tu sabes que ela perdeu os sonhos de criança por minha causa... Se é possível, amado Jesus, permite agora que lhe dê minha vida!... Senhor, deixa que eu ofereça, à filha de minha alma, tudo o que eu tenho!...”
Quando esses trechos da oração se lhe rearticularam no pensamento, sorriu e compreendeu. Sim, considerou intimamente, devia regozijar-se. Acreditava que Marina e Marita ali se achavam juntas... juntas... Por que não dar alegremente a vida para que a filhinha prematuramente desencarnada, por culpa dele, viesse a refazer a existência? por que não agradecer ao Senhor o bendito instante em que pudera acautelar Marina contra o carro homicida?
Não seria aquela hora, para ele, Espírito endividado, a maior manifestação da bondade de Deus? Impelira a filha para a morte, incriminara-se sem que a justiça da Terra lhe infligisse punições.
Nas preces costumeiras, rogava aos amigos espirituais o ajudassem no resgate da falta cometida. Se lhe competia encetar o pagamento do débito assumido, apenas no curso de existências porvindouras, por que não iniciá-lo, mesmo ali, entre os rostos desconhecidos que Marita, igualmente, fora constrangida a defrontar?...
Soberana tranqüilidade se lhe instalou no espírito.
Diante da ambulância que chegara, pediu a própria internação no Hospital dos Acidentados. Que o serviço policial o favorecesse.
Carregado por braços generosos, despediu-se da filha, a recomendar-lhe otimismo, serenidade. Esperasse por Gilberto e lhe participasse o acontecido, sem exagerar as impressões. Nada de alarmes. Se necessário, pediria o concurso de alguém para dar noticias ao telefone. Que não se apoquentasse por sustos.
Dentro do carro, enquanto Nogueira pensava em Marita, ao viajar num carro igual àquele, nas mesmas circunstâncias, Percília, que o aconchegava de encontro ao colo, se desfazia em pranto copioso. Concluindo, porém, que Moreira e eu nos desassossegávamos

CONTINUA AMANHÃ

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