sábado, 29 de dezembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

experimentara, ainda era suficientemente abastado para fazê-la feliz. Reclamava resposta. Ameaçava.
Nogueira, reservado, queimou o papel. A ocorrência, no entanto, se repetiu diariamente, por dois meses.
Minuciosa ou sintética, a missiva chegava, pontualmente. Cada texto mais inconveniente que o outro. Por vezes, relatava as andanças a que se entregava no Flamengo, tentando revê-la. Noutras ocasiões, depois de frases melífluas, exigia pronunciamentos descabidos, sob pena de estourar o crânio, deixando queixa à Polícia contra ela, com o fim de arruiná-la. Em bilhetes comprometedores,
proibia-lhe dar filhos a Gilberto. Preferia matá-la ou matar-se a receber netos do lar que haviam formado. Referia-se ao revólver, qual se lhe fosse companheiro incessante.
Dia a dia, o negociante se figurava ao leitor paciente mais contraditório e menos lúcido. Cada vez que entregava os manuscritos ao fogo, Cláudio percebia que o redator de tantos aleives se atascava, sempre mais, em loucura e obsessão, sem que lhe fosse facultado assumir qualquer providência, entre o genro feliz e a filha gestante. Cumpria-lhe tudo amargar, sem dividir com pessoa alguma a dor que o espicaçava. E para que a filha não pudesse penetrar os motivos de tamanha solicitude, ele se lhe convertera no pajem de todo instante.
No encontro último de consultório, indicara o médico ligeiros exercícios físicos. Nenhuma ginástica. Algo suave. Bastariam marchas diminutas a pé. Realizasse à noitinha curto passeio até à praia, em esforço diário, enquanto lhe fosse possível. Nada mais que isso. A gestante obedeceu e, como era de esperar, Nogueira se lhe erigiu em guarda-costas, sustentando o coração repassado de inquietude. Não se lhe oferecia ensejo de opor embargos à prescrição.
Para a filha, aquela primeira manifestação de Nemésio, pelo serviço postal, fora varrida do pensamento.

Marina, enlaçada ao pai, largava o prédio, efetuando breve percurso, para sentar-se, junto dele, nunca por mais de meia hora, ao pé do mar. Aí se entretinham habitualmente nos temas caseiros, quando não se internavam em assuntos do espírito.
Escorridos seis dias sobre as excursões aconselhadas, o registro de Torres pai veio diferente.
Acompanhando Nogueira, analisamos a alteração. A letra
modificada, configurando insultos, revelava superexcitação fronteira à demência. Comunicava à esposa de Gilberto tê-la visto, por fim, na praia, em companhia daquele pai, que crivava de pejorativos e ofensas, e verificara que ela, afinal, se engravidara contra as ordens que lhe ditara em observações anteriores. Acreditava-se o mais desmoralizado de todos os homens desmoralizados. Enojava- se da paixão que nutrira por ela, preferia morrer. Confessava-se falido. Escasseava-lhe tudo. Acabara-se o dinheiro, desertavam amigos. Restava-lhe de seu, tão-só, a moradia, assim mesmo hipotecada. Esperara por ela, pelas decisões dela. Se juntos, contaria com a possibilidade de se reerguer. Entretanto, a gravidez apontada desiludira-o. Plantaria uma bala na cabeça. Despedia-se dela e do mundo com repugnância. Que visse nos borrões freqüentes daquelas páginas com que encerrava a existência as marcas das lágrimas que chorava. Lágrimas de revolta, desprezo, repulsão. Finalizava, alinhando obscenidades e informando estar assinando o nome pela última vez.
Nogueira, assustado, leu e releu o documento e, antes de reduzi-lo a cinzas, insulou-se no quarto e orou por aquele homem que, pelo jeito, se afundava em pavoroso desespero. Compadeceuse.
Impraticável, todavia, colocar o genro ao corrente da situação.
Nemésio delirava. Mais justo que o filho aguardasse noticias do tresloucado genitor por outras fontes. Impressionou-se, contudo, de tal forma com a mensagem recolhida que, após o almoço, demandou, com discrição, algumas das organizações policiais e hospitalares que lhe pareciam suscetíveis de fornecer alguma pista, com referência ao suicídio anunciado, mas em vão. Nenhum vestígio. Depois da caminhada, junto da filha, repousou mais cedo. Sentia fome de meditação mais prolongada. Concentrando-se em pensamentos de benevolência e de fé, rogava a Jesus pelo adversário. Que os mensageiros do Cristo se apiedassem de Nemésio, amparando-o. Se ainda estivesse no corpo carnal, que se lhe estendesse o socorro preciso para que não resvalasse em deserção; se houvesse forçado irrefletidamente as portas da vida espiritual, que fosse bafejado pela proteção dos Emissários Divinos...
Enquanto Moreira e eu lhe acompanhávamos a súplica, Percília entrou.
Esperou o momento oportuno e comunicou-nos que vinha da parte do irmão Félix, a fim de colaborar conosco. Os apelos de Cláudio, durante todo o dia, transmitidos para o “Almas Irmãs”, tinham impelido vários amigos a rogar auxílio em benefício dele.
Chegara no objetivo de ser útil. E nós, que lhe admirávamos a bondade silenciosa, enternecemo-nos ao observar a devoção com que se instalou no aposento, qual enfermeira afetuosamente consagrada a doente querido.
Mais quatro dias transcorreram sem episódios especiais, a não ser a extrema dedicação de Percília que, diante de Cláudio, era análoga ao amor de Cláudio para com a filha.
Entre sete e oito da noite, descemos do prédio e demandamos os sítios conhecidos...
Os Nogueiras conversavam tranqüilamente, em torno de assuntos triviais, à frente das águas mansas, tão mansas que refletiam prateadas faixas do firmamento, a constelar-se de luz.
A aragem soprava, aliviando a tensão do dia.

CONTINUA AMANHÃ

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