sexta-feira, 9 de novembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

– Escrevi um bilhete, prometendo vê-la, mas combinei com o velho para que ele mesmo fosse buscá-la. Ele mesmo é quem propôs a solução. Você sabe, não podia deixar de atendê-lo... Primeira vez.
– Estou perplexa, nervosa... Não compreendo...
– Ele me pediu escrever aceitando, para que Marita não ficasse chocada. Disse que ela tem estado borocoxô e prometeu que ele iria procurá-la, de modo a dar conselhos e a reanimá-la com uma boa notícia, uma excursão à Argentina...
– Como?
– Olhe lá, Argentina... Uma viagem para a Argentina...
Uma risada seguiu-se e, depois dela, a consideração sarcástica:
– Sanatório, meu bem. Sanatório ou hospício. Para Marita, só
sanatório e, quanto mais longe, melhor!... Argentina para uma e Petrópolis para dois...
Nesse ponto da entrevista, a jovem baqueou.
Debruçou-se na cantoneira, inabilitada a retomar o fone, à vista dos soluços que lhe rebentavam do peito.
Escutávamos, nitidamente, a voz do rapaz, a distância, gritando:
– Marina! Marina! diga o que há, diga, diga!...
A pequenina mão encharcada de lágrimas, no entanto, repôs o fone no gancho, com a tristeza de quem cerrava, em definitivo, as portas do coração.
A moça dedicou alguns minutos ao refazimento, reconstituiu, quanto possível, a tranqüilidade fisionômica e tornou à sala.
Embaraçada, referiu-se ao dinheiro emprestado. Que Dona Cora lhe perdoasse o incômodo. Se não pudesse voltar em pessoa, no dia seguinte, a companheira de seção na loja, Neli, que lhes era também íntima, faria o pagamento, considerando-se a hipótese de ela, Marita, não se achar em serviço. Bastaria procurar.
Dona Cora riu-se, cordial. Não pensasse naquilo.
Prestimosa, estendeu-lhe o café que ela aceitou, constrangida.
Conversa vai, conversa vem, a amiga estranhou-lhe o abatimento, a palidez, os olhos que não cessavam de chorar. Marita explicouse, ensaiando um sorriso que não chegou a debuxar-se. Alegou-se gripada. Tinha coriza renitente, coriza brava. E, a propósito, indagou se ela julgava possível encontrar ainda o senhor Salomão, naquele instante, depois das dez, na farmácia vizinha. Gostaria de se aconselhar com ele sobre um antigripal. Trazia a cabeça pesada, os pulmões doloridos.
A delicada anfitriã pediu um momento e correu ao telefone para voltar, quase de imediato, dizendo que o farmacêutico a esperaria. Estava a sair do plantão, que ela não se delongasse.
Marita agradeceu, despediu-se e seguimo-la, passo a passo.
O senhor Salomão, velhinho calmo e complacente, em cujo olhar se adivinhava a brandura dos que se fazem servidores espontâneos da Humanidade nos encargos que exercem, acolheu-a, solícito.
Ocultando os intentos recônditos, a recém-chegada falou-lhe do resfriado. Afirmou sentir dores, vertigens. O boticário, de modos antigos, habituado ao ofício a representar-se de médico para os amigos, nos casos sem maior importância, pediu-lhe mostrasse a língua. Examinou-a com a prática de muitos anos, ao pé de enfermos, sem achar motivo de preocupação. Aplicou o termômetro.
Nenhuma febre.
Sorriu, paternal, e aconselhou-a a ir para a casa, descansar.
Não deveria aceitar serviço extra, até aquela hora da noite, comentou bonachão, e acrescentou que ela facilmente encontraria remédios para comprar, mas não a saúde. Indicou-lhe aspirina para a nevralgia, que supunha em ação, e... repouso.
A jovem recolheu os medicamentos, fez o gesto de quem se inclinava a retirar-se, satisfeita, e voltou à carga, aparentando recordar uma providência esquecida.
– Salomão – disse com decidida curiosidade a transparecerlhe da voz -, não sei se você está lembrado de “Jóia,” a minha velha cadelinha, que os meninos algumas vezes abraçaram na praia...
– Como não? Aquela inteligência de animal, brincando de esconder!...
Até hoje, os netos imitam o andar de gatinhas que ela
inventou...
– Pois é – prosseguiu Marita, afetando pena -, nossa pequena
“Jóia” está no fim...
– Que foi?
– O veterinário explicou, mas não guardei o nome da moléstia, doença incurável. Grita sem pausa, um martírio.
Continuando, falou para Salomão que o bichinho se tornara problema no apartamento. O síndico reclamara várias vezes.
Vizinhos andavam contrafeitos. Os pais aguardavam que o veterinário amigo voltasse de São Paulo, a fim de que se aplicasse a eutanásia; entretanto, haviam autorizado tanto a ela, quanto à irmã, o emprego de algum remédio que pudesse trazer o descanso final. “Jóia” estava abatida, gasta. Lamentava perdê-la, fora-lhe companheira, no Flamengo, desde quando se ausentara da escola, simples menina. Ainda assim, aditava, era preciso enfrentar os fatos e poupar ao animalzinho maiores sofrimentos. Não teria o amigo algumas pílulas adequadas? Ouvira referências a comprimidos que, administrados em dose alta, propiciavam a morte, absolutamente sem dor; no entanto, não lhes conhecia o nome.

CONTINUA AMANHÃ

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