Capítulo 14
Adiantamo-nos, Félix e eu, ao encontro da jovem.
Marita estugava o passo, amarfanhada, aturdida.
Da Lapa, onde se localizava a habitação coletiva que vínhamos de deixar, até à Cinelândia, correra quase.
Sentia-se tangida por todos os ventos da adversidade, expulsa da Terra. Traída nos mais íntimos sentimentos de mulher, a injúria experimentada transcendia para ela toda a noção de sofrimento.
Teria agradecido ao homem que conhecera por pai o punhal ou o veneno, mas não dispunha de forças para perdoar-lhe aquela afronta. A revolta sacudia-lhe os membros. Tremia, desesperada.
Na cabeça, uma idéia só, ganhando extensão: o suicídio. Ansiava atirar-se sob os carros que deslizavam à frente. Morrer... desaparecer... meditava, chorando. Entretanto, era preciso viver um tanto mais. Restava um enigma: Gilberto. Por que se esquivara, a substituir-se, cruel? Que trama teria havido entre eles? Lera-lhe a missiva, conhecera-lhe a letra. Escrevera, afirmando vir... Por que
desistira? Como soubera Cláudio do encontro? Através de Crescina?
As interrogações sem resposta convulsionavam-na toda. Desvairava.
Rangia os dentes, querendo gemer.
A morte, a morte!... – pedia, mentalmente, tentando apertar os lábios que se abriam sem voz.
Ainda assim iria consultar Gilberto, sugeriam as últimas réstias do sonho desmantelado. Sim, aprovava no turbilhão dos pensamentos em descontrole, era necessário ouvir Gilberto... Uma vez só que fosse. Imperioso conhecer a verdade, morrer com a verdade...
Quem saberia? Talvez que o rapaz lhe estendesse um fio de luz, por onde se desvencilhasse da sombra... Se ele dissesse: “vive, vive para mim”, conseguiria esquecer o insulto daquela noite, continuando a viver... Ao contrário, tudo extinto...
Caminhando apressada e indiferente à aragem que lhe acarinhava os cabelos, repelia-nos, em espírito, as maiores demonstrações de ternura e consolo.
Nenhuma idéia que se lhe não afinasse com a repulsão.
Decididamente, se Gilberto participara da armadilha a que se arrojara, inocente, estava tudo acabado. Tão-somente lhe restaria o desprezo final.
Alcançou o Largo do Passeio e parou um momento... Fitou, angustiada, aquelas árvores frondejantes que tanto amava... Galharias balouçadas ao vento pareciam chamá-la para abraços de adeus... Marita soluçou, teve medo, mas seguiu adiante... Varou a massa risonha que deixava os cinemas, recordou Gilberto e a menina feliz que ela fora, vendo namorados saboreando pipocas; contudo, seguiu, seguiu sempre, vencendo encontrões. Atingindo a Praça Marechal Floriano, abancou-se, vasculhando o cérebro atormentado...
Sentia-se, enfim, absolutamente sozinha, completamente desamparada.
Comprimindo a cabeça entre as mãos, queria idéias, alguma idéia que lhe ofertasse saída do antro pungente da angústia.
Debalde, irmão Félix, ao enlaçá-la, lhe assoprava conceitos de paciência e cordura, inutilmente se referia à bondade e ao perdão. Aquele coração juvenil, conquanto bondoso, figurava-se, agora, um lago límpido que vulcão oculto, de inesperado, fazia referver. Todas as orlas abertas, em bocas de incêndio, pelas quais as ondas do pensamento fugiam, precipitadas. Nenhum lugar exposto à receptividade, nenhum ponto marcado ao equilíbrio e ao silêncio.
No crânio tumultuado, uma idéia surdiu, ensejando-lhe tênue fio de esperança. Telefonar!... Poderia telefonar para a residência dos Torres. Gilberto, indubitavelmente, estaria ao pé da genitora enferma. Além disso, Marina viajara pela manhã. Uma razão a mais para que se não retirasse do carinho necessário à doente.
Ainda assim – refletiu –, seria muito provável que ele, a distância, lhe embaísse a boa-fé. Insopitável desconfiança amargava-lhe o coração qual raiz espinhosa. Não descortinava, contudo, saída melhor. Conversar! Ouvi-lo! Tinha sede da verdade, ansiava saber, saber!...
Raciocínios contundentes entrechocavam-se-lhe na cabeça atribulada...
Não, não retornaria ao lar do Flamengo... Entre voltar à casa dos Nogueiras e morrer, preferia morrer...
Perscrutou circunstâncias, analisou-se, meditou, meditou...
Pensamento estranho assomou-lhe, de súbito. Disfarçar-se, fingir. Para alcançar a verdade, mentiria.
Entraria, sim, no jogo com aquilo que se lhe apresentou à imaginação, como sendo a cartada final.
Marita concluía que ela e a irmã, pela intimidade e pela convivência, tinham vozes semelhantes, maneiras afins. Chamaria o rapaz como sendo Marina, imitar-lhe-ia, quanto possível, o tom de palestra, repetir-lhe-ia as palavras de uso mais freqüente no trato doméstico. Simularia estar voltando, inopinadamente, de Teresópolis.
O moço, assim abordado, confessaria, de modo inequívoco, tudo o que sentisse, com respeito a ela própria.
A sofredora criança consultou o relógio-pulseira. Dez minutos para as nove.
Desejava ambiente familiar para a ligação. Lembrou-se de Dona Cora, cliente da loja em Copacabana, que se lhe fizera
Marita estugava o passo, amarfanhada, aturdida.
Da Lapa, onde se localizava a habitação coletiva que vínhamos de deixar, até à Cinelândia, correra quase.
Sentia-se tangida por todos os ventos da adversidade, expulsa da Terra. Traída nos mais íntimos sentimentos de mulher, a injúria experimentada transcendia para ela toda a noção de sofrimento.
Teria agradecido ao homem que conhecera por pai o punhal ou o veneno, mas não dispunha de forças para perdoar-lhe aquela afronta. A revolta sacudia-lhe os membros. Tremia, desesperada.
Na cabeça, uma idéia só, ganhando extensão: o suicídio. Ansiava atirar-se sob os carros que deslizavam à frente. Morrer... desaparecer... meditava, chorando. Entretanto, era preciso viver um tanto mais. Restava um enigma: Gilberto. Por que se esquivara, a substituir-se, cruel? Que trama teria havido entre eles? Lera-lhe a missiva, conhecera-lhe a letra. Escrevera, afirmando vir... Por que
desistira? Como soubera Cláudio do encontro? Através de Crescina?
As interrogações sem resposta convulsionavam-na toda. Desvairava.
Rangia os dentes, querendo gemer.
A morte, a morte!... – pedia, mentalmente, tentando apertar os lábios que se abriam sem voz.
Ainda assim iria consultar Gilberto, sugeriam as últimas réstias do sonho desmantelado. Sim, aprovava no turbilhão dos pensamentos em descontrole, era necessário ouvir Gilberto... Uma vez só que fosse. Imperioso conhecer a verdade, morrer com a verdade...
Quem saberia? Talvez que o rapaz lhe estendesse um fio de luz, por onde se desvencilhasse da sombra... Se ele dissesse: “vive, vive para mim”, conseguiria esquecer o insulto daquela noite, continuando a viver... Ao contrário, tudo extinto...
Caminhando apressada e indiferente à aragem que lhe acarinhava os cabelos, repelia-nos, em espírito, as maiores demonstrações de ternura e consolo.
Nenhuma idéia que se lhe não afinasse com a repulsão.
Decididamente, se Gilberto participara da armadilha a que se arrojara, inocente, estava tudo acabado. Tão-somente lhe restaria o desprezo final.
Alcançou o Largo do Passeio e parou um momento... Fitou, angustiada, aquelas árvores frondejantes que tanto amava... Galharias balouçadas ao vento pareciam chamá-la para abraços de adeus... Marita soluçou, teve medo, mas seguiu adiante... Varou a massa risonha que deixava os cinemas, recordou Gilberto e a menina feliz que ela fora, vendo namorados saboreando pipocas; contudo, seguiu, seguiu sempre, vencendo encontrões. Atingindo a Praça Marechal Floriano, abancou-se, vasculhando o cérebro atormentado...
Sentia-se, enfim, absolutamente sozinha, completamente desamparada.
Comprimindo a cabeça entre as mãos, queria idéias, alguma idéia que lhe ofertasse saída do antro pungente da angústia.
Debalde, irmão Félix, ao enlaçá-la, lhe assoprava conceitos de paciência e cordura, inutilmente se referia à bondade e ao perdão. Aquele coração juvenil, conquanto bondoso, figurava-se, agora, um lago límpido que vulcão oculto, de inesperado, fazia referver. Todas as orlas abertas, em bocas de incêndio, pelas quais as ondas do pensamento fugiam, precipitadas. Nenhum lugar exposto à receptividade, nenhum ponto marcado ao equilíbrio e ao silêncio.
No crânio tumultuado, uma idéia surdiu, ensejando-lhe tênue fio de esperança. Telefonar!... Poderia telefonar para a residência dos Torres. Gilberto, indubitavelmente, estaria ao pé da genitora enferma. Além disso, Marina viajara pela manhã. Uma razão a mais para que se não retirasse do carinho necessário à doente.
Ainda assim – refletiu –, seria muito provável que ele, a distância, lhe embaísse a boa-fé. Insopitável desconfiança amargava-lhe o coração qual raiz espinhosa. Não descortinava, contudo, saída melhor. Conversar! Ouvi-lo! Tinha sede da verdade, ansiava saber, saber!...
Raciocínios contundentes entrechocavam-se-lhe na cabeça atribulada...
Não, não retornaria ao lar do Flamengo... Entre voltar à casa dos Nogueiras e morrer, preferia morrer...
Perscrutou circunstâncias, analisou-se, meditou, meditou...
Pensamento estranho assomou-lhe, de súbito. Disfarçar-se, fingir. Para alcançar a verdade, mentiria.
Entraria, sim, no jogo com aquilo que se lhe apresentou à imaginação, como sendo a cartada final.
Marita concluía que ela e a irmã, pela intimidade e pela convivência, tinham vozes semelhantes, maneiras afins. Chamaria o rapaz como sendo Marina, imitar-lhe-ia, quanto possível, o tom de palestra, repetir-lhe-ia as palavras de uso mais freqüente no trato doméstico. Simularia estar voltando, inopinadamente, de Teresópolis.
O moço, assim abordado, confessaria, de modo inequívoco, tudo o que sentisse, com respeito a ela própria.
A sofredora criança consultou o relógio-pulseira. Dez minutos para as nove.
Desejava ambiente familiar para a ligação. Lembrou-se de Dona Cora, cliente da loja em Copacabana, que se lhe fizera
CONTINUA AMANHÃ
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