segunda-feira, 26 de novembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

pessoa ligada por laços de amor à piedosa dama, que encerrava, calada e humilde, a derradeira página da existência naquela casa que a fortuna abrilhantava. Ao fitar aquele corpo hirto, caiu de joelhos, em lágrimas copiosas. Invejou aquela cujo último sorriso de complacência ali se estampava sereno, qual se estivesse satisfeita por deixá-la no lugar que ocupara, durante tantos anos, ao pé de um esposo que a enganara sempre.
Ah! Dona Beatriz!... Dona Beatriz!...
As palavras soluçadas escapavam daquele peito juvenil, como se quisessem traçar uma longa confissão.
Acercamo-nos da moça, no propósito de auxiliá-la; entretanto, Félix considerou que o desafogo lhe faria bem.
Marina, fatigada de insônia e desgastada pela ação dos obsessores que lhe exauriam as forças, sentia medo.
Contemplava o envoltório descarnado de Dona Beatriz, através das lágrimas, refletindo nos segredos da morte e nos problemas da vida...
Se a alma sobrevivia ao corpo – pensava, inquieta –, decerto que a senhora Torres vê-la-ia agora sem o mínimo subterfúgio.
Certificar-se-ia de que ela fora, ali, não a enfermeira espontânea e sim a mulher que lhe dominava o esposo e o filho...
Atemorizada, rogava-lhe entendimento, perdão.
Que diria aquela boca silenciosa para ela, se pudesse falar, depois de auscultar a verdade?...
Beatriz, porém, naquele instante conduzida ao refazimento, jazia inacessível às complicações da sociedade terrestre. E, em lugar dela, era o próprio remorso que se lhe alteava na imaginação, acusando, acusando...
A mágoa da jovem provocava simpatia nos circunstantes e despertava, tanto em Nemésio quanto no filho, novos motivos de atração. À frente do choro pungente, ambos fitavam-na, enternecidos, exprimindo reconhecimento nos olhos, cada qual desejando nela a companheira ideal para casamento próximo, sem a menor suspeita, quanto às convicções um do outro.
Naquela mesma noite, assinalei a falta de Dona Beatriz no ambiente caseiro.
O afastamento da filha de Neves e dos amigos espirituais que lhe freqüentavam a companhia deixara a vivenda qual praça desarmada de quaisquer recursos que lhe garantissem a ordem.
Transcorrido algum tempo sobre o velório em si, vagabundos desencarnados nele tiveram acesso livre.
O nível dos pensamentos descambou para a conversação libertina.
Nem mesmo a dignidade que a morte infundia ao recinto
foi acatada. Relatos jocosos irromperam, suplementados pela chacota dos próprios anedotistas. Um dos presentes comentou, entusiasta, os espetáculos debochados de que fora testemunha, em recente viagem ao estrangeiro, suscitando o interesse de vampirizadores
que ouviam as narrações, seduzidos pela tentação de repeti-los, na versão deles próprios.
Não contentes, por fim, com os licores aristocráticos, desde muito guardados nos armários da família, beberrões encarnados e desencarnados impeliram Nemésio à encomenda telefônica de vinhos e uísques, rapidamente gorgolejados por gargantas sequiosas.
O irmão Félix, prevendo a leviandade, recomendara se aplicasse, à matrona desencarnada, recursos anestesiantes, a fim de que se lhe mantivesse o isolamento do licencioso festim, praticado em nome da solidariedade afetiva perante a morta.
Os derradeiros afeiçoados de Beatriz, no plano espiritual, se retiraram, discretos, e nós mesmos não tivemos outro recurso senão largar a residência, alta madrugada, depois do socorro a Marina, relegando os despojos da nobre senhora às grossas nuvens de emanações alcoólicas que instalavam, por toda a habitação, atmosfera dificilmente respirável.
Somente no dia seguinte, acabados os funerais, voltei do hospital ao ninho dos Torres, onde a filha de Cláudio se demorava.
Telefonemas diversos, entre mãe e filha, examinavam a nova situação. Dona Márcia reclamava o regresso, Nemésio desejava que a secretária lhe amparasse a moradia. Ele próprio, em dado momento, chamou Dona Márcia pelo fio, solicitando-lhe concessões.
Que Marina permanecesse orientando as servidoras que lhe atendiam a casa. Mais algumas semanas e tudo se aclararia satisfatoriamente.
A senhora Nogueira, honrada com a gentileza, não vacilava confiar. Aquiesceu lisonjeada, feliz.
Em cada frase que o chefe lhe deitara de longe aos ouvidos, pressentia a aliança de Nogueiras e Torres pelo casamento entre os jovens.
Marina, entretanto, explorada nas próprias energias pelos agentes da perturbação que Moreira lhe pespegara, definhava no leito. Trancara-se no quarto. Doía-lhe a deslealdade que cultivara, incessantemente, diante da filha de Neves, culpava-se pelo desastre que arruinara Marita, a quem não tinha coragem de visitar ou rever. Ela que se vira, até então, vitoriosa em todas as partidas, sentia-se derrotada, à feição de contendor arredado da arena pela própria imperícia. Chorava. Ouvia vozes, declarava-se perseguida por vultos estranhos. Fugia de todos, enfadada, nervosa. Se recebia Nemésio ou Gilberto, caía em crise de pranto que os conselhos não removiam e nem os medicamentos conseguiam sedar.
Escoados cinco dias de apreensões, Nemésio telefonou para Dona Márcia, com mais clareza, rogando-lhe permissão para um entendimento pessoal, no Flamengo, na manhã seguinte. Informado

CONTINUA AMANHÃ


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