sábado, 24 de novembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

conhecimento enobrecedor, com que se advertisse, recuando natrilha percorrida para adotar direção diferente.
Marina, à mercê da força que lhe espatifava os recursos psíquicos, sentia-se derrotada...
Da impassibilidade ante o desastre ocorrido com a irmã,
transferiu-se à opressão, ao temor...
Ao toque do inquisidor que lhe vasculhava a cabeça, começou a imaginar que Marita, em verdade, não intentaria o suicídio, se nela houvesse achado uma companheira honesta e piedosa.
Rememorou a noite em que divisara Gilberto pela primeira vez. O jovem saía de um cinema, em companhia da irmã, amparando-a contra a chuva. Tamanha a doçura daqueles olhos, tão grande o carinho daqueles braços!... Julgou encontrar Nemésio mais moço. Comprometida com Torres, pai, presumia enxergar no filho os atributos de juvenilidade que lhe faltavam... Capricho ou afeição, apaixonara-se pelo rapaz, cortejara-o abertamente. Enlaçara-o com os dotes de inteligência, até acender-lhe na alma entusiasta o anseio de compartilhar-lhe sonhos e emoções. Convidara-o a entretenimentos, agarrara-lhe o coração. Instalara nele a necessidade dela, tornara-o dependente, escravo. Manobrava-o inteiramente, o que a irmã, inexperiente e sincera, não se animara a fazer, conquanto lhes conhecesse, através dele próprio, o compromisso oculto. Ao sabê-lo aprisionado à outra, requintara-se, aliás, nos processos de sedução. Acariciava-o, impunha-se, manietava-o, à maneira da aranha entretecendo o fio veludoso para cativar o inseto que se dispõe a devorar...
Perante o libelo do juiz inesperado, perguntava-se pela tranqüilidade própria. Examinando escrupulosamente as atitudes que assumira, verificava, espantada, que lesara a si mesma. O remorso figurou-se-lhe trado invisível a verrumar-lhe o crânio. Lágrimas abundantes lhe subiram do peito aos olhos, lembrando jorros de água que a broca somente consegue arrancar, ao subsolo, ao tatear
lençóis mais fundos.
O médico, assistido pessoalmente pelo dono da casa, apanhou-a em crise de pranto. Não obstante apreensivo, consolou-a, erguendo-lhe o ânimo. Falou em cansaço. Elogiou-lhe a pontualidade e o devotamento de enfermeira, prescreveu-lhe tranqüilizantes.
Que ela repousasse, que não desamparasse a si mesma.
Marina, porém, não ignorava que a consciência se debatia em pânico, que era inútil qualquer tentame para largar o foro íntimo.
Quando o facultativo se despediu, retomou o choro convulso, diante de Nemésio que, intimidado, trancou a porta e se abicou, junto dela, no intuito de confortá-la e confortar-se.
Constrangido a facear com a cena de ternura, sem fundamentos de afeição recíproca, inquietei-me por Moreira, que zombeteava, lançando frases ultrajantes.
Nemésio rogava à moça tratar-se, refazer-se. Tivesse paciência, que se regozijassem ambos. Nada além de mais alguns poucos dias e estaria em pessoa, no Flamengo, para os derradeiros arranjos do casamento. Contava com ela e queria fazê-la feliz. Encantado, beijava-lhe o rosto molhado, qual se aspirasse a sorver-lhe as lágrimas, enquanto que a jovem, francamente conturbada, lhe arremessava olhares de esguelha, entremeados de compaixão e repulsa.
Convidei Moreira à retirada. Ele, porém, desapiedado, indagou se me falhava a coragem para conhecer Marina, tanto quanto ele, e, porque me inclinasse a defendê-la, acrescentou que não se achava ali na posição de carrasco. Escarninho, recomendou-me não acusá-lo, asseverando que detinha tanta culpa na indisposição da jovem quanto aquela que teria um bisturi na ablação de umtumor.

Pedi-lhe, em consideração a Cláudio, nos auxiliasse a proteger-lhe a filha, menina recruta na guerra contra o mal, embora se acreditasse suficientemente sabida.
Por que não nos conservarmos à porta, resguardando-a? Um momento talvez chegasse em que passaríamos a rogar-lhe concurso.
Não obstante alegar que nunca se acomodara à alcovitice, que não tinha vocação para capa de malfeitores, aquiesceu e saímos.
Do lado externo, porém, à vista de referir-me à hipnose, no campo afetivo, expendendo considerações ao redor da paciência, que nos toca exercer, junto de todas as pessoas em distúrbios do sexo, ele riu-se abertamente e comentou, galhofeiro, que não me adiantava falar grego, diante de obscenidades que para ele possuíam nomes próprios, e advertiu-me que quando o pai se retirasse viria o filho e que eu perderia a graça e o latim de qualquer jeito.
Efetivamente, quando o chefe da casa se retirou, o rapaz, cansado da vigília noturna, veio em nossa direção e entrou no quarto.
O colega endereçou-me olhar significativo; contudo, antes que se desregrasse na crítica, apareceu alguém com bastante simpatia e piedade para desfocar-nos a mente.
Era o irmão Félix.
Através da expressão, dava-me a perceber que se inteirara de todos os sucessos em curso; no entanto, abriu os braços para Moreira, à feição do pai que reencontra um filho. O amigo, que volvera ao desequilíbrio sentimental, por sua vez, reconheceu-se invadido por eflúvios regenerativos e recordou, sensibilizado, o primeiro encontro em que o benfeitor lhe solicitara colaboração para Marita, e enterneceu-se.
Félix, sem um gesto que lhe exprobrasse a deserção, apelou para ele com absoluta confiança:
– Ah! meu amigo, meu amigo!... Nossa Marita!...

E, ante as indagações do interlocutor, que o tratava como de igual para igual, esclareceu que a menina piorara. Dores agudas lhe mortificavam o corpo. Afligia-se, fatigada. Desde o momento em que ele, Moreira, se afastara, tudo indicava que a pobrezinha entrara em regime de carência. A sofredora criança necessitava
dele, esperava por ele, a fim de aliviar-se.
Ante as frases sinceras que o atingiam no fundo, o exassessor de Cláudio acudiu, incontinenti, regressando em nossa companhia para o hospital, onde realmente a moça se estirava em situação lastimável.
Quatro horas haviam escoado, modificando-nos a tela de serviço.
Averiguamos que o pedido de Félix não se alicerçava num artifício piedoso. Escorada por Telmo, que lhe insuflava energias, Marita não lhe assimilava a influência com tanta segurança.
Sem qualquer propósito de censura, é licito registrar que faltava entre eles aquela harmonia necessária às crenas das rodas de engrenagem determinada, num plano de sustentação. Telmo, rico de forças, apoiando-a, lembrava um sapato novo e precioso em pé doente. Cedendo lugar ao recém-chegado que o rendeu, pronto, verificou-se, de imediato, alguma desopressão. Marita ajustou-se, mecanicamente, aos cuidados que Moreira lhe oferecia. Ainda assim, a peritonite instalava-se, dominante.
Aumentara o mal-estar.
A filha de Aracélia gemia sob a atenção atribulada de Cláudio, que a observava, azorragado de sofrimento íntimo. Entretanto, agora, o ex-vampirizador do Flamengo encontrava enorme diferença. Acicatada pelos padecimentos físicos, Marita não dispunha de facilidades para pensar senão nas próprias dores, contundida, suarenta, amarfanhada... E o martírio corporal que lhe transfundia todos os impulsos, num gemido que não conseguia articular, provocava em Moreira, unicamente, simpatia e compaixão.

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: