jaziam, agora, perto e longe um do outro. Juntos por fora e distantes por dentro. Ombros unidos e pensamentos opostos. Moreira fora atingido pelos acontecimentos, mas não tanto. Patenteava enorme afeição por Marita, lutava por ela, mas, no fundo, não escondia o propósito de seguir controlando Cláudio, no resguardo de seu próprio interesse. Identificando o parceiro tocado no coração pelos sentimentos edificantes que a leitura lhe sugerira, revelava o desapontamento semelhante ao de um pianista que surpreendesse o instrumento favorito com as teclas mudas. Alarmado, desfechou-me perguntas. Sosseguei-o, afirmando que o cérebro de Nogueira se anulava, naquele instante, por arrasadoras comoções; entanto, no íntimo, certificara-me de que ele havia dado um passo adiante e de que o companheiro menos feliz deveria elevar-se no mesmo diapasão para desfrutar-lhe a convivência, se não quisesse perder-lhe a companhia.
A mente do bancário emergia daquelas horas reduzidas de estudo compulsório, sob a tormenta moral, ao jeito de paisagem, quando varrida de terremoto. Nenhuma analogia com o que era antes. Em razão disso, enfadava-se o outro, melindrado, triste.
Mesmo assim, Moreira retomou o trabalho de manutenção da jovem prostrada.
Nisso, porém, chegaram dois auxiliares, Arnulfo e Telmo,
que vinham, da parte do irmão Félix, colaborar no auxílio à menina.
Ambos simpáticos, espontâneos.
Apresentei-os ao mantenedor magnético, surpreso, cuja posição espiritual reconheceram, de pronto; contudo, na gentileza característica dos corações generosos, envidaram todos os esforços para não constrangê-lo com qualquer linha divisória de tratamento.
Rodearam-no de otimismo e bondade, qualificando-o na
categoria de colega estimável.
Na antevéspera, aquele irmão, que se avalentoava no Flamengo, não aceitaria tal camaradagem; todavia, Marita ali respirava, entre dois mundos... Fatigada, dispnéica...
Por Marita, suportava as alterações, sofreava os impulsos.
A madrugada abeirava-se do dia.
Acercamo-nos de Cláudio.
Indispensável fazê-lo descansar, dormir.
Moreira, com iniludível desgosto a se lhe estampar na fisionomia, observou-nos o cuidado, na administração dos passes balsâmicos, aos quais o paciente aquiesceu sem qualquer contradita.
Aliás é de mencionar-se a sensação de alívio com que Cláudio nos respondeu ao toque sugestivo. Acabava de viver minutos de martírio inominável. Aspirava ao repouso, mendigava esmola de paz.
Todavia, enquanto se lhe relaxavam os nervos tensos à pressão do sono que lhe impúnhamos, brandamente, Moreira a tudo assistia, no crescente desagrado da pessoa que contempla a agitação e a mudança de sua casa, conturbada em serviços de reforma que não pediu. Lançava ondas de azedia e amargura no sorriso amarelo. Tudo para ele surgia deslocado, revirado... Entre o amigo
que lhe fugia ao comando e a jovem, cujo corpo físico se decidia a preservar, sentia-se atônito, desenxavido...
Compreendendo que não lhe seria lícito incompatibilizar-se conosco, simplesmente à face da assistência que o esposo de Dona Márcia recolhia de nós, aplicou-se com mais veemência às atenções para com a moça, cujos pensamentos mais profundos empenhava-se agora por auscultar. Marita, a seu turno, porque assimilasse mais amplo montante de força, acabou reassumindo o leme dos centros cerebrais, que ainda se lhe mantinham à disposição.
Recuperou a sensibilidade olfativa, percebia, raciocinava e ouvia com relativa segurança; contudo, estava hemiplégica, nada enxergava e extinguira-se-lhe a fala, de modo irreversível. A princípio, admitiu-se acordando no sepulcro. Ouvira muitas narrações, alusivas a mortos que despertavam no túmulo, lera depoimentos relacionando sucessos dessa ordem e assistira a vários filmes de horror. De alma opressa, supunha-se num transe desses, estendida ali no leito que tomava por ataúde, no silêncio de aflições inapeláveis...
Forcejava por gritar, reclamando socorro; no entanto, veio-lhe a idéia de haver esquecido o processo de articular as palavras. Sabia-se pensando com a própria cabeça, mas ignorava agora os movimentos coordenadores da voz. Apesar de tudo, reconhecia-se consciente. Sentia, memorizava. Recordou os acontecimentos que lhe haviam inspirado o propósito de morrer. Arrependia-se. Se a vida continuava, para que provocar o fim do corpo?
– considerava, desditosa. Lembrou as ocorrências da Lapa, a entrevista com Gilberto pelo telefone de Dona Cora, os comprimidos
de Salomão, o sono à frente do mar, o desconhecido prestes a assaltá-la, a corrida para o asfalto, a queda sob o automóvel em movimento... Depois, aquilo ali... O corpo estatelado que lhe parecia de pedra, a consciência ativa, as percepções aguçadas e a incapacidade de expressão... Intimamente, o esforço desesperado para fazer-se notar; no entanto, sentia-se entalada por gargalheira de chumbo. Irritou-se, debalde. Fremia de impaciência, de espanto, de dor... Mágoa e revolta, petitórios e indagações esmaeciamse-lhe, imanifestos, no âmago do ser. Por mais se empenhasse a chorar, desoprimindo-se, as lágrimas se lhe represavam no peito, sem nenhum canal que lhe extravasasse as agonias. Os olhos, tanto quanto a língua, se lhe figuravam desligados do corpo...
Estaria morta – perquiria a jovem num misto de perplexidade e sofrimento –, ou quase a morrer?
Escutou os passos da enfermeira de plantão e registrou a respiração sibilante do pai, sem a possibilidade de identificar-lhes a
A mente do bancário emergia daquelas horas reduzidas de estudo compulsório, sob a tormenta moral, ao jeito de paisagem, quando varrida de terremoto. Nenhuma analogia com o que era antes. Em razão disso, enfadava-se o outro, melindrado, triste.
Mesmo assim, Moreira retomou o trabalho de manutenção da jovem prostrada.
Nisso, porém, chegaram dois auxiliares, Arnulfo e Telmo,
que vinham, da parte do irmão Félix, colaborar no auxílio à menina.
Ambos simpáticos, espontâneos.
Apresentei-os ao mantenedor magnético, surpreso, cuja posição espiritual reconheceram, de pronto; contudo, na gentileza característica dos corações generosos, envidaram todos os esforços para não constrangê-lo com qualquer linha divisória de tratamento.
Rodearam-no de otimismo e bondade, qualificando-o na
categoria de colega estimável.
Na antevéspera, aquele irmão, que se avalentoava no Flamengo, não aceitaria tal camaradagem; todavia, Marita ali respirava, entre dois mundos... Fatigada, dispnéica...
Por Marita, suportava as alterações, sofreava os impulsos.
A madrugada abeirava-se do dia.
Acercamo-nos de Cláudio.
Indispensável fazê-lo descansar, dormir.
Moreira, com iniludível desgosto a se lhe estampar na fisionomia, observou-nos o cuidado, na administração dos passes balsâmicos, aos quais o paciente aquiesceu sem qualquer contradita.
Aliás é de mencionar-se a sensação de alívio com que Cláudio nos respondeu ao toque sugestivo. Acabava de viver minutos de martírio inominável. Aspirava ao repouso, mendigava esmola de paz.
Todavia, enquanto se lhe relaxavam os nervos tensos à pressão do sono que lhe impúnhamos, brandamente, Moreira a tudo assistia, no crescente desagrado da pessoa que contempla a agitação e a mudança de sua casa, conturbada em serviços de reforma que não pediu. Lançava ondas de azedia e amargura no sorriso amarelo. Tudo para ele surgia deslocado, revirado... Entre o amigo
que lhe fugia ao comando e a jovem, cujo corpo físico se decidia a preservar, sentia-se atônito, desenxavido...
Compreendendo que não lhe seria lícito incompatibilizar-se conosco, simplesmente à face da assistência que o esposo de Dona Márcia recolhia de nós, aplicou-se com mais veemência às atenções para com a moça, cujos pensamentos mais profundos empenhava-se agora por auscultar. Marita, a seu turno, porque assimilasse mais amplo montante de força, acabou reassumindo o leme dos centros cerebrais, que ainda se lhe mantinham à disposição.
Recuperou a sensibilidade olfativa, percebia, raciocinava e ouvia com relativa segurança; contudo, estava hemiplégica, nada enxergava e extinguira-se-lhe a fala, de modo irreversível. A princípio, admitiu-se acordando no sepulcro. Ouvira muitas narrações, alusivas a mortos que despertavam no túmulo, lera depoimentos relacionando sucessos dessa ordem e assistira a vários filmes de horror. De alma opressa, supunha-se num transe desses, estendida ali no leito que tomava por ataúde, no silêncio de aflições inapeláveis...
Forcejava por gritar, reclamando socorro; no entanto, veio-lhe a idéia de haver esquecido o processo de articular as palavras. Sabia-se pensando com a própria cabeça, mas ignorava agora os movimentos coordenadores da voz. Apesar de tudo, reconhecia-se consciente. Sentia, memorizava. Recordou os acontecimentos que lhe haviam inspirado o propósito de morrer. Arrependia-se. Se a vida continuava, para que provocar o fim do corpo?
– considerava, desditosa. Lembrou as ocorrências da Lapa, a entrevista com Gilberto pelo telefone de Dona Cora, os comprimidos
de Salomão, o sono à frente do mar, o desconhecido prestes a assaltá-la, a corrida para o asfalto, a queda sob o automóvel em movimento... Depois, aquilo ali... O corpo estatelado que lhe parecia de pedra, a consciência ativa, as percepções aguçadas e a incapacidade de expressão... Intimamente, o esforço desesperado para fazer-se notar; no entanto, sentia-se entalada por gargalheira de chumbo. Irritou-se, debalde. Fremia de impaciência, de espanto, de dor... Mágoa e revolta, petitórios e indagações esmaeciamse-lhe, imanifestos, no âmago do ser. Por mais se empenhasse a chorar, desoprimindo-se, as lágrimas se lhe represavam no peito, sem nenhum canal que lhe extravasasse as agonias. Os olhos, tanto quanto a língua, se lhe figuravam desligados do corpo...
Estaria morta – perquiria a jovem num misto de perplexidade e sofrimento –, ou quase a morrer?
Escutou os passos da enfermeira de plantão e registrou a respiração sibilante do pai, sem a possibilidade de identificar-lhes a
CONTINUA AMANHÃ
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