quinta-feira, 15 de novembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

Capítulo 2

Confrangido, mas sereno, Félix acercou-se de Nogueira, administrou-lhe energias de refazimento e, após levantá-lo, despediu-se, asseverando que voltaria.
Que não me inquietasse, falou, bondoso. Estaríamos juntos,enviaria cooperadores, tomaria providências.
Respondi, sossegando-o. Afeiçoara-me àquela menina que,afinal, era nossa filha em espírito. Não, não a deixaria na durafase da desencarnação.
Entrementes, Cláudio afastou-se, buscando o especialista.
Moreira, que me observava desde a chegada, fitava-me agoracom simpatia, que me empenhava em conservar.
Em dado momento, interpelou-me. Amaciou o tom de voz edisse reconhecer-me. Queixou-se. Vira diversos irmãos desencarnados,avizinhando-se da porta e acenando com asco. ApontavamMarita com desprezo, referiam-se a figurações despudoradas,traçavam gestos no ar, sugerindo quadros obscenos, e um deleschegara ao desplante de abordá-lo, indagando quem era aquela mulher que transpirava carniça.
Tratei de consolá-lo. Aquilo passaria. Esperávamos companheiros, abastecidos com os recursos necessários, a fim de que isolássemos o recinto.
Satisfazendo-lhe as perguntas, esclareci que, sem querer, assistira ao desastre e condoera-me daquela moça sozinha, jogada no asfalto.
Quis saber minudências; contudo, temendo embaraços, prometi-lhe que, logo aparecesse oportunidade, colheria informes seguros para nós ambos.
Tentando harmonizá-lo com as exigências do serviço que nos defrontava, roguei-lhe permissão para cooperar. Ficaria contente se ele me aceitasse o concurso, ali, ao pé daquela jovem que a provação humilhava. Colhera alguma experiência em hospitais e poderia ser útil.
Moreira comoveu-se e aprovou a idéia. Sim, aclarou, devotava-se a ela, com ardente afeição, e me reconhecia o desinteresse em servi-la. Contaria comigo, reportou-se a compensações. Conhecia meios de auxiliar-me, defender-me-ia, ser-me-ia companheiro fiel.
Em seguida, examinou curiosamente o processo pelo qual a respiração de Marita era auxiliada e pediu-me instruções. Queria substituir-me. E com tanta diligência e humildade se colocou no meu posto que, em minutos breves, atendia à manutenção da jovem, com segurança superior àquela que me esforçava em cultivar.
Procurei adestrá-lo. Obedeceu docilmente e guardou nos braços aquele corpo amarrotado, que se transfigurara num fardo de dor, salpicado de fezes. O perseguidor da véspera, tocado no âmago, enlaçou-a com a dignidade de um homem piedoso que socorre uma irmã, empregando-se no trabalho de instilar-lhe energias e reaquecer-lhe os pulmões com o próprio hálito.
Sensibilizado, ao identificar-lhe a transformação, concluí que nem sempre é o salva-vidas, tecnicamente construído, a peça que assegura a sobrevivência do náufrago, e sim o lenho agressivo que teimamos em desdenhar.
Retirei-me, por instantes, à busca de Cláudio e encontrei-o em compartimento próximo. Valia-se do intervalo, em que era constrangido a esperar pelo médico, para telefonar.
A voz inconfundível de Dona Márcia vinha do outro lado. O esposo falava, sob traumatismo evidente; ela, no entanto, não respondia fora da destreza mental que lhe conhecíamos. Folgava em saber que a filha estava ainda viva. Melhor encerrassem o assunto. Se a Medicina já estava em cena, desistia de aumentar as aflições que lhe inçavam a casa.
Nogueira passou do noticiário às súplicas. Seria conveniente que ela viesse amenizar a situação.
A senhora, porém, mencionou compromissos inadiáveis. Estava de saída para a aquisição de linhas, destinadas à confecção de vários enfeites encomendados por Marina. Compreendia que a moça talvez não se recuperasse; entretanto, inclinava-se a crer que tudo não passava de episódio sem importância. Marita sempre fora exagerada em questões de sensibilidade, gostava da ostentação de ridículo. Além disso, se estivesse tão mal quanto o marido supunha, ele, na condição de pai, se achava lealmente junto da filha, eximindo a ela, Dona Márcia, de sacrifícios maiores do que aqueles que já lhe sobrecarregavam os ombros. Fez chiste, mascarando de sarcasmo o desapontamento com que recolhia a informação de que a filha adotiva não estava morta, impelindo todos os constrangimentos da família à estaca zero. Recordou ao esposo que o Rio não era interior e que doente algum se podia dar ao luxo de contar com mais de uma pessoa, acalentando o leito, numa capital que excedia o tamanho de Babilônia. Declarou-se cansada de bobagens e arrufos entre jovens namorados e afirmou preferir tricotar a fazer adulação para uma filha que não era dela e que sempre timbrara em loucura e faniquito. Rematava, aconselhando para que não se complicassem com despesas. Que ele ouvisse os médicos e removesse a menina, quanto antes, para casa.
Nogueira, desolado, insistiu, pintando o quadro em que se contristava; entretanto, a senhora encerrou a conversação, atirando-lhe uma frase que lhe despedaçou as últimas esperanças:
– Bem, Cláudio, tudo isso é problema seu.
Nogueira discou para a residência dos Torres.

CONTINUA AMANHÃ

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