sábado, 10 de novembro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

O farmacêutico, sem qualquer prevenção, confirmou. Sim, talvez tivesse no estoque alguns desses anestésicos de elevada potência e salientou que se a cadelinha fora condenada pelo veterinário não deveria ser conservada.
Convencido pelas informações reiteradas da moça, dirigiu-se a pequeno depósito, procurando, procurando...
Nisso, Félix e eu abordamo-lo, mentalmente.
O paternal benfeitor rogou-lhe examinasse a situação. Fitasse aquela menina, assim fatigada e só, além das dez horas da noite, longe de casa. Despenteada, olheiras fundas, sem bolsa, sem agasalho. Ele também, Salomão, era pai e avô sensível. Não desse orientação em torno de venenos. Tivesse cuidado. Sossegasse aquela criança abatida com algum soporífero, fazendo-a admitir que levava o agente letal. Mentisse por piedade, mostrasse compaixão, adiando entendimento mais claro para depois.
Aquele homem, com toda a certeza, se agrisalhara em rudes experiências para adquirir a sensibilidade aguçada com que nos assimilou os apelos, porque, de imediato, se enterneceu. Voltouse, discretamente, para o balcão e mirou a freguesa, pela porta semicerrada, espantando-se ao vê-la, num instante como aquele em que não se supunha observada.
Marita afigurou-se-lhe uma peça do museu de cera, amarrotada, inerte. Somente os olhos, embora parados, se evidenciavam ativos, em razão das lágrimas copiosas.
“Oh! meu Deus” – refletiu ele, desconsolado –, “isso não é coriza, isso é dor moral, dor terrível!...”
Salomão renunciou à pesquisa iniciada e sacou de largo recipiente de vidro alguns sedativos comuns e tornou-lhe à presença.
Fingiu despreocupação e apresentou-lhe os comprimidos, asseverando:

– São estes. Para a cachorrinha, no estado de que você fala, basta um.
– Tão violento assim? – perguntou a jovem, diligenciando reanimar-se.
– Isso é uma bomba de aplicação muito rara.
Aparentando-se embaído, para angariar-lhe a confiança, o boticário paternal alegou, porém, que só forneceria ante a receita médica. A responsabilidade pesava-lhe, muito grande.
Ela, contudo, insistiu. Que o farmacêutico não duvidasse. O veterinário assinaria o papel. Consultou se poderia adquirir dez unidades. Melhor agir na certa. Não agüentava mais os gemidos ao pé do leito.
Salomão refletiu, refletiu... Voltou ao depósito e escolheu dez comprimidos calmantes, de potencialidade suave. Se ingeridos por ela, funcionariam beneficamente, prodigalizando-lhe sono reparador.
Marita agradeceu e despediu-se.
Salomão recomendou-lhe repouso, juízo.
Seguimo-la, de perto.
Vagarosa, atravessou dois quarteirões pela frente, ganhou a Avenida Atlântica e acolheu-se num bar.
Solicitou um copo de água simples, sem gás, em recipiente de plástico. Delicadamente atendida, transpôs o asfalto, pulou do calçamento de pedra no lençol argenteado de areia e acomodou-se no lugar que lhe pareceu mais escuro...
Aspirava a morrer, ao pé do mar, daquele mar sereno e bom que nunca a enjeitara, refletia com lágrimas... Queria partir, contemplando aquele mar que a beijava sem malícia...
Antes do gesto que considerava supremo, recordou a mãezinha que não conhecera e supôs-se mais infeliz. A genitora, não obstante desprezada pelo homem a quem se entregara, conseguira um teto para o momento do grande adeus. Ela não. Fora maltratada, espezinhada, escorraçada. Devia partir do mundo com um nome emprestado que detestava, agora... Classificava-se por lixo da terra, supunha desafogar a todos, renunciando à existência.
Rememorou as manhãs felizes em que desfrutara, ali mesmo, tantas vezes, o ar puro que vinha das águas e o agasalho do Sol.
Parecia rever a massa domingueira, fraternalmente confundida na carícia da espuma. Atenta, imaginava-se ouvindo, de novo, a algazarra das crianças, lançando a bola ou manejando a peteca...
Sim, não possuía um lar para morrer, mas dispunha da praia, hospitaleira e amiga, que reunia desconhecidos, aos milhares, sem nunca fazer-lhes perguntas indiscretas, a todos abraçando por verdadeiros irmãos...
Lamentou-se e chorou, longo tempo, enquanto Félix e eu esperávamos que dormisse para enfrentarmos os problemas eventuais.
Marita despejou os dez comprimidos na boca e engoliu-os de um sorvo com água pura. Em seguida, arrimou-se no encosto do passeio de pedra, qual se se dispusesse a meditar... Dos olhos, penderam as lágrimas que ela acreditou fossem as últimas e deixou que a brisa lhe afagasse os cabelos.
Brando torpor anestesiou-a.
Consultamos o horário. Cinqüenta e cinco minutos depois da meia-noite.
Félix orou por instantes.
Não pude compreender, de imediato, se por obrigações de vigilância ou se correspondendo aos apelos do instrutor, dois rondantes desencarnados apareceram, ofertando serviço. Félix aceitou, reconhecido, e, enquanto os recém-chegados passaram a velar, ele e eu empreendemos a tarefa restaurativa. Providências

CONTINUA AMANHÃ

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