quarta-feira, 31 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

E o martelo verbal tornou aos estribilhos do passado. As festas de Aracélia, as companhias de Aracélia, as desilusões de Aracélia...
Verificando no olhar da jovem a penosa impressão com que era obrigada a recolher tais lembranças, a interlocutora, sem mais fundo lastro de amor para comovê-la, modificou a tática afetiva e alinhou histórias de seu conhecimento, em que sonâmbulos realizavam proezas diversas.
Argumentou que ela e Cláudio, perante a ocorrência, que analisavam com o carinho de pais verdadeiros e não com qualquer espírito de censura, haviam recordado que ela, em criança, muitas vezes acordava aos gritos, pela madrugada, fazendo birra e queixando-se de inexplicáveis terrores. Levada ao médico, o facultativo receitara calmantes. Rememorou, bem-humorada, a opinião de velho amigo da família, que dissera a ela e a Cláudio andar a menina atacada de nictofobia, e que, somente depois, ambos recorreram ao dicionário, a fim de aprenderem que a palavra significava “medo da noite”.
Dona Márcia riu-se àquelas chistosas evocações, completamente alheia à importância do assunto. Afagou os ombros de Marita e aconselhou-lhe juízo.
A jovem, perplexa, tanto quanto nós mesmos, não teve ânimo para desmentir. Ignorava como deslindar a meada que o sedutor entretecera. Preferiu acriançar-se, aparentando aprovação com o silêncio. No íntimo, contudo, revoltava-se.
Cláudio trapaceara e a mãe adotiva caíra no logro.
Não possuía recursos para demonstrar a verdade. Tocava-lhe tão-somente suportar e esperar.
Dona Márcia, no claro propósito de evitar o problema e, aliás, denotando naquela hora elogiável sinceridade na compaixão pela moça que supunha doente, convidou-a a examinarem, juntas, o primoroso estoque de “boutique” vizinha.
Marita aquiesceu, conformada, e o entendimento malogrado passou, superficialmente, valendo para nós por aviso grave, a fim de que reforçássemos todo o sistema de vigilância, no compromisso assistencial.
Transcorreram cinco dias, sem que aparecessem acontecimentos dignos de menção. Contava justamente uma semana de contacto com os novos amigos, quando, ao partilhar as inquietações de Neves, fui procurado por atencioso companheiro a quem solicitara cooperação. Avisava-me de que certa senhora demandara o banco, procurando Cláudio no assunto que nos tomava a atenção.
Ao sol da manhã em giro alto, dirigi-me para o local, encontrando-a em pequena sala de espera, contígua a extenso escritório, no qual operosa equipe de funcionários desdobrava operações de contabilidade interna.
A dama aguardava Nogueira, ausente em serviço.
A recém-chegada trajava-se com primor, exibindo, porém, o ar das mulheres que, depois de perderem as ilusões, acabam fazendo negócio dos prazeres que já não são mais capazes de usufruir.
Detínhamo-nos no exame despretensioso da personagem que tangenciava com a nossa história, quando Cláudio se apresentou, lépido e bem-posto. Junto dele, o acompanhante desencarnado, qual se lhe fora a sombra, não mais me admirando vê-los visceralmente associados, pensando e falando em absoluta simbiose.
Conheciam-se os dois, porquanto ele a nomeou, para logo, de madame Crescina, inclinando-se, familiar, para a conversação cochichada, demonstrando-se ambos naturalmente acostumados aos segredos que se transmitem, da boca ao ouvido.
Alguma novidade? – indagou ele, esfregando as mãos uma na outra, com o sorriso brejeiro de quem prelibava festas.
A visitante, contudo, falou, encabulada, dos motivos que a traziam.
Recebera-lhe Marita, a filha adotiva, horas antes, e, sinceramente – informava –, não conseguira subtrair-se ao obséquio que lhe suplicara com lágrimas.
Diante do interlocutor, atento, prosseguiu comunicando que a moça desejava encontrar-se, na noite próxima, com Gilberto, um rapaz que, vez por outra, lhe freqüentava o casarão. Escolhera para isso o compartimento separado, nos fundos, o número quatro, por mais reservado e acolhedor. A pobre criança – acentuava, compadecida – formulara-lhe o apelo, em caráter confidencial.
Propusera-lhe a concessão, muito abatida, nervosa. Não pudera alhear-se ao pedido. Também tinha duas filhas no mundo, também era mulher. Acedera.
Mas, não era só isso. Marita remunerara-a, com bondade, para encarregar-se de entregar um bilhete ao filho dos Torres.
E, perante os olhos espantados do amigo, que acumulava na curiosidade o anseio do vampirizador, a confidente arrancou da bolsa o documento pequenino, em que a jovem implorava ao namorado fosse vê-la, às oito da noite, no lugar indicado. Saberia não incomodá-lo, não tivesse receio. Rogava-lhe a presença e solicitava resposta.
Cláudio lia, lia, entre ciumento e indignado. Sim – refletia –, era o cúmulo do sarcasmo. Gilberto a governá-la daquela maneira!
O compartimento dos fundos, o número quatro!... Conhecia-o.
E esquisita coincidência! Era o recanto que ele também, por vezes, elegia para si próprio, quando buscava a pensão alegre de Crescina, para entreter-se, descansar... Marita, sem saber, compartia- lhe as preferências!... O despeito comprimia-lhe o coração,

CONTINUA AMANHÃ

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