quarta-feira, 3 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

Capítulo 6

De volta ao aposento da enferma, certificamo-nos de que Nemésio e Marina haviam saído. 
A camareira da casa velava.
Neves, desenxabido, absteve-se de qualquer comentário. 
Retraíra-se no claro propósito de sopitar impulsos menos construtivos.
Recompondo-se, momentos antes, rogara do irmão Félix lhe desculpasse o ataque de cólera em que extravasara rebeldia e desespero.
Descera à inconveniência, acusava-se, humilde.
Fora descaridoso, insensato, penitenciava-se com tristeza. 
O irmão Félix, com bastante autoridade, se quisesse, poderia demiti-lo do piedoso mister que invocara, com o objetivo de proteger a filha; entretanto, pedia tolerância. 
O coração paternal, no instante crítico, não se vira preparado, de modo a escalar o nível do desprendimento preciso, declarava com amargura e desapontamento.
Félix, porém, abraçara-o com intimidade e, sorridente, ponderou que a edificação espiritual, em muitas circunstâncias, inclui explosões do sentimento, com trovões de revolta e aguaceiros de pranto, que acabam descongestionando as vias da emoção.
Que Neves esquecesse e recomeçasse. 
Para isso, contava com os talentos da oportunidade, do tempo. 
Obviamente, por isso, o sogro de Nemésio ali se achava agora, diante de nós, transformado e solícito.
Por indicação do paciente amigo que nos orientava, formulou uma prece, enquanto ministrávamos socorro magnético à doente.
Beatriz gemia; no entanto, Félix esmerou-se para que se aliviasse e dormisse, providenciando, ainda, para que não se retirasse do corpo, sob a hipnose habitual do sono.
Não lhe convinha, por enquanto, esclareceu ele, afastar-se do veículo fatigado. 
Em virtude dos órgãos profundamente enfraquecidos, desfrutaria penetrante lucidez espiritual e não seria prudente arremessá-la, de chofre, a impressões demasiado ativas da esfera diferente para a qual se transferiria, muito em breve.
Aconselhável seria a mudança progressiva. Graduação de luz, intensificando-se, a pouco e pouco.
Largamos a filha de Neves em repouso nutriente e restaurador, e demandamos a rua.
Acompanhando Félix, cujo semblante passou a denotar funda preocupação, alcançamos espaçoso apartamento do Flamengo, onde conheceríamos, de perto, os familiares de Marina.
A noite avançava.
Transpassando estreito corredor, pisamos o recinto doméstico, surpreendendo, no limiar, dois homens desencarnados, a debaterem, com descuidada chocarrice, escabrosos temas de vampirismo.
Vale assinalar que, não obstante pudéssemos fiscalizar-lhes os movimentos e ouvir-lhes a loquacidade fescenina, nenhum dos dois lograva registrar-nos a presença. 
Prometiam arruaças. 
Argumentavam, desabridos.
Malandros acalentados, mas perigosos, conquanto invisíveis para aqueles junto dos quais se erguiam por ameaça insuspeitada.
Por semelhantes companhias, fácil apreciar os riscos a que se expunham os moradores daquele ninho de cimento armado, a embutir-se na construção enorme, sem qualquer defesa de espírito.
Entramos. 
Na sala principal, um cavalheiro de traços finos, em cuja maneira de escarrapachar-se se adivinhava, para logo, o dono da casa, lia um jornal vespertino com atenção.
Os atavios do ambiente, apesar de modestos, denunciavam apurado gosto feminino. 
O mobiliário antigo de linhas quase rudes suavizava-se ao efeito de ligeiros adornos.
Tufos de cravos vermelhos, a se derramarem de vasos cristalinos, harmonizavam-se com as rosas da mesma cor, habilmente desenhadas nas duas telas que pendiam das paredes, revestidas de amarelo dourado. 
Mas, destoante e agressiva, uma esguia garrafa, contendo uísque, empinava o gargalo sobre o crivo lirial que completava a elegância da mesa nobre, deitando emanações alcoólicas que se casavam ao hálito do amigo derramado no divã.
Félix encarou-o, manifestando a expressão de quem se atormentava, piedosamente, ao vê-lo, e no-lo indicou:
– Temos aqui o irmão Cláudio Nogueira, pai de Marina e tronco do lar.
Fisguei-o, de relance.
Figurou-se-me o hospedeiro involuntário um desses homens maduros que se demoram na quadra dos quarenta e cinco janeiros, esgrimindo bravura contra os desbarates do tempo. 
Rosto primorosamente tratado, em que as linhas firmes repeliam a notícia vaga das rugas, cabelos penteados com distinção, unhas polidas, pijama impecável. 
Os grandes olhos escuros e móveis pareciam imanizados às letras, pesquisando motivos para trazer um sorriso irônico aos lábios finos. Entre os dedos da mão que descansava à beira do sofá, o cigarro fumegante, quase rente ao tripé anão, sobre o qual um cinzeiro repleto era silenciosa advertência contra o abuso da nicotina.
Detínhamo-nos, curiosos, na inspeção, quando sobreveio o inopinado.
Diante de nós, ambos os desencarnados infelizes, que surpreendêramos à entrada, surgiram de repente, abordaram Cláudio e agiram sem-cerimônia. Um deles tateou-lhe um dos ombros egritou, insolente:

CONTINUA AMANHÃ

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