sexta-feira, 26 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

Lindo anjo de meus passos,
Descansa, meu doce bem;
Dorme, dorme nos meus braços,
Enquanto a noite não vem.
Dorme, filhinha querida;
Não chores, encanto meu;
Dorme, dorme, minha vida,
Tesouro que Deus me deu...
 
Qual se fora repentinamente magnetizada, Marita caiu em pesado sono.
Isso feito, a senhora, que tutelava a companheira, atraiu-a brandamente de encontro ao peito, no manifesto propósito de consolá-la e, segurando-a, falou-nos, triste:
– Irmãos, nossa Aracélia ainda não está em condições de amparar a filha.
E, ajuntou, entre gentil e desapontada:
– Perdoem-nos a interferência. Nós, as mães, em certas dificuldades, nada mais temos que alguma velha canção para dar aos nossos filhos!...
Em seguida, retirou-se, sustendo Aracélia, que se lhe refugiara nos braços, soluçando...
Ainda não nos refizéramos da emoção, quando vimos Marita, em espírito, afastar-se do corpo denso, guardando a inquietação da criança que anseia inutilmente pelo calor materno... 
Qual ocorre, porém, à maioria das criaturas encarnadas, no plano físico, mostrava lucidez oscilante, insegura... 
Cambaleou no quarto e, percebendo eu que Neves se dispunha a amimá-la, sustive-lhe o impulso, fazendo-lhe sentir que a nossa intervenção direta poderia frustrar-lhe os desejos e que, a fim de prestar-lhe auxílio eficiente, era mister deixá-la à vontade, sob vigilância discreta, de modo a examinar-lhe as necessidades mais íntimas.
Sucedeu, quase que de imediato, o que não prevíamos.Esfumaram-se os arroubos da filha saudosa, esmaeceram-se atitudes infantis, a menina de Aracélia desaparecera e ressurgiu nela a personalidade feminina, estuante e clara.
A moça não nos via. Guardava a mente nebulosa que caracteriza os pequeninos ainda tenros, incapazes de particularizar as impressões, quando se transferem de lugar; entretanto, qual lhes acontece, quando ao reterem idéias fixas, quais sejam o brinquedo ou a guloseima, concentraram-se-lhe todos os pensamentos num ponto só: Gilberto.
Queria ver Gilberto, ouvir Gilberto.
Semelhantes impulsos a se lhe conglomerarem na cabeça, repetidamente emitidos, galvanizavam-lhe a vontade, revestindo-lhe o pensamento de uma certa clareza, que a favorecia, porém, tão-só na direção dos seus anseios de mulher. Essa penetração parcial como que lhe conferia agora seguro apoio íntimo e Marita, figurando-se-nos senhora de si, conquanto absolutamente presa ao desejo ardente em que se obstinava, largou o aposento e, descendo os largos trechos da escadaria que contornava o elevador, deixou para trás o enorme edifício, qual sonâmbula, magnetizada pelos próprios reflexos.
Seguimo-la, atentos, não obstante confiando-a à própria discrição.
Cabia-nos estudar-lhe os ímpetos extrovertidos, consultar-lhe as inclinações. Não tivemos, todavia, qualquer dificuldade para adivinhar-lhe o rumo.
Em tempo reduzido, a filha adotiva de Cláudio alcançou a residência de Nemésio, que já se nos fizera conhecida.
Na certeza instintiva de quem se endereça a determinada pessoa, pelos recursos do olfato, sem atender a quaisquer convenções de forma e número, avançou casa a dentro, acalentando a imagem de Gilberto, que lhe substancializava o pensamento dominante.
Impulsionada pelas percepções indefiníveis da alma, demandou amplo dormitório, localizado nos fundos da moradia, e, sem que nos fosse possível avaliar, de pronto, a resolução de garantirlhe a liberdade, a fim de analisar-lhe as reações, sobreveio o choque doloroso.
Naturalmente sobressaltados, apenas conseguimos ampará-la pela retaguarda.
Entrando no quarto, Marita surpreendeu Gilberto nos braços da irmã, e bradou, estarrecida:
– Canalha! Canalha!...
Aquelas imprecações, entretanto, nem de longe atingiram o jovem par, completamente absorto na permuta de gratificações afetivas.
Neves e eu não trocamos palavra. Precipitamo-nos, automaticamente, para a menina atribulada, intentando anular-lhe a agitação convulsiva.
Mais alguns minutos e despertou no corpo denso, obrigandonos a pensar numa pequena fera aguilhoada, retornando à gaiola.
Descerrando as pálpebras, vagarosamente, denotava no olhar a feição dos loucos, quando relaxam os músculos em seguida a perigoso acesso de fúria. Tateou, espantada, a fronte suarenta. Fez luz, com fome de realidade física. Atarantada, sentou-se para fixar as paredes, com mais segurança, e certificar-se de que se achava no leito e no lar.
A pouco e pouco, readquiriu a confiança, acalmou-se, refazendo energias; no entanto, acusava uma espécie de tranqüilidade constrangida e amarga.
Pesadelo? – indagava-se, aterrada – ou quem sabe os padecimentos simultâneos lhe acarretavam crises de loucura?
Doía-lhe a cabeça, sentia-se desajustada, febril. Marita regressara ao agasalho físico, sob pressa demasiada, sem que nos fosse possível adotar qualquer providência para anestesiar-lhe a memória.
Retinha no pensamento particularidades do quadro visto e ouvido, e encarcerada, de novo, entre as impressões superficiais dos sentidos corpóreos e a noção da verdade profunda, que não lograva apalpar, entrou em pranto agoniado, para somente dormir, com relativa calma, aos clarões do dia.

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: