quinta-feira, 25 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

o tom de alegria triunfante, ao dar-se conta da felicidade com que se desembaraçaria de Gilberto, no campo em que se prometia apresá-la.
Cláudio como que lhe falava de longe, ao dirigir-se à esposa.
Aquelas referências louvaminheiras com que a obsequiava, perante Dona Márcia, confirmavam-lhe a decisão de dobrá-la, demovêla.
Entre o asco e a piedade, rememorava-lhe as carícias, que somente naquela noite conseguira compreender.
Como desvencilhar-se?
Flor sacudida no vento da provação, perguntava por quê, por quê?...
Sopesando as ocorrências, pela primeira vez sentia medo daquele ninho familiar a que se reconhecia encadeada por filha do coração.
De repente, elevou o pensamento à memória materna... Ah! nunca imaginara que um coração feminino pudesse encontrar dilemas tão aflitivos, quanto aqueles a que se via largada, de instante para outro! Que não teria sofrido sua própria mãe, que a deixara no instante do alvorecer? Nunca soubera, ao certo, as circunstâncias que lhe haviam rodeado o nascimento. Concluía agora, porém, que talvez a genitora tivesse conhecido o cálice que ela agora amargava! Que noites de agonia moral atravessara, sozinha, ao acariciá-la no ventre! Que injúrias padecera, que privações experimentara? Ela, que tudo desconhecia acerca do pai, refletia no martírio da genitora, jovem e abandonada, quando, provavelmente, lhe aguardava, em vão, o carinho e a proteção, noite a noite. Dona Márcia, ao biografar-lhe a mãezinha, dissera “moça brincalhona”. Teria sido mesmo? Possivelmente, gargalharia para não soluçar, ansiando abafar em ruídos de festa os gritos da própria alma... Quem sabe ter-se-ia dedicado a algum homem proibido, empenhado o coração a algum moço que lhe fora roubado à ternura de menina e mulher?
Nas lágrimas que lhe corriam, suspirava por fazer-se criança...
Por que não vivera a mãezinha, a fim de lutarem juntas?
Consagrar-se-iam uma à outra. Permutariam as próprias mágoas...
Muitas vezes, na loja a que servia, escutava apontamentos sobre comunicações de mortos, inteirava-se de experiências sobre a continuação da vida no Além... Seria aquilo verdade? – indagavase.
Se Aracélia, libertada, estivesse em alguma parte, indiscutivelmente lhe acompanharia o calvário, compartilhar-lhe-ia o infortúnio...
Mecanicamente, implorava ao Espírito materno a abençoasse, fortificasse, protegesse... Conquanto sem qualquer idéia religiosa definida, formulava prece muda, que valia por funda invocação...
Intentávamos consolá-la, buscando asserenar-lhe a mente, quando duas senhoras desencarnadas penetraram no quarto, de improviso.
Saudaram-nos, afetuosamente, revelando a condição de entidades familiares, vinculadas àquele refúgio doméstico.
Das recém-chegadas, a que nos pareceu menos experiente adiantou-se para a menina em oração. Controlava-se, dificilmente.
Tremia, ao enxugar o pranto silencioso. Inclinou-se para o leito, como qualquer mãe desventurada e aflita da Terra, quando teme acordar um ser querido...
Embora sem elucidações prévias, não nos era licito alimentar qualquer dúvida. Aquela, era a jovem do retrato que Marita conservava, em imagem, nas telas do pensamento. Aracélia, amparada pela doce afeição de venerável amiga, ali estava, diante de nós!
Mãe amorosa, vinha talvez de muito longe para acudir às angústias da filha... Enternecendo-nos, a pobre mãe ajoelhou-se para beijar-lhe os cabelos... E, oh! segredos insondáveis da Providência
Divina!... Quem conseguirá definir com palavras humanas a essência do amor que Deus situou nas entranhas maternas?... A dama inclinou-se, muito de manso, e abraçou-a, com ternura, à maneira de planta que se fechasse sobre a única flor que lhe nascera...
A castigada menina acalmou-se, de súbito. Adivinhando a visita pela qual suspirava, alijou a tensão, percebendo-se mentalmente ocupada pela presença da genitora, cujos traços tentava, afetuosa, lembrar e reconstituir.
Outro quadro, entretanto, superpôs-se, comovedor.
Aracélia, que orava e chorava em profundo silêncio, buscava em pensamento outra mulher, cuja evocação lhe renovava as energias.
A mãe desencarnada via-se pequenina, junto da lavadeira singela que a trouxera, na reencarnação última, para o teatro da vida humana. Identificava-se criança, agarrada à saia daquela moça doente, que mergulhava as pernas no rio para ganhar o pão... Tão fundo atingia a acústica da memória, que chegava a escutar o ruído daquelas mãos miúdas, esfregando as peças ensaboadas...
Recolhia-lhe, de novo, o olhar meigo, em que lhe pedia paciência...
Calada, na areia, por vezes esperava, esperava, depois que a mãezinha lhe repunha o corpo frágil, à curta distância, a fim de atender ao serviço... E rememorava o enlevo e o júbilo que sentia, quando os braços maternos a retomavam, para fazê-la dormir, ao som do velho estribilho, a que se acostumara no lar de telha vã....
De olhos parados, como se buscasse, além, no espaço infinito, o colo agasalhante que o tempo arrebatara, assumiu nova posição, colocando a cabeça da jovem no próprio regaço e, emocionandose até às lágrimas, qual se tivesse nos lábios aqueles lábios de  mãe, humilde e enferma, que jamais esqueceria, Aracélia, em pranto resignado, cantou suavemente diante de nós:

CONTINUA AMANHÃ

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