quarta-feira, 24 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

as maneiras inconfessáveis, no trato com o chefe de serviço, não lhe deixavam dúvidas. Ao revés, as noticias entusiásticas de Márcia acordavam-no para realidades mais agressivas.
Inferia que Marina andava sem escrúpulos entre o velho e o moço.
De outro modo, na condição de esposo, não lograria embair-se. A companheira figurava-se-lhe a mulher desleal aos compromissos domésticos, mulher que ele mesmo plasmara com os seus exemplos de homem refratário ao equilíbrio emotivo. Impossível queixar-se. Com a tarimba da sociedade menos digna, fizera-se Márcia astuciosa, cruel. Dissimulava para ganhar. Certamente, não lhe confiava quanto sabia. Estaria informada de todas as ligações escusas da filha com o senhor Torres, tanto quanto ele próprio.
Capearia as inconveniências, incentivaria, talvez, a leviandade com propósitos de lucro; entretanto, aquele era o momento de atrair a confiança de Marita e, à face dessa razão que se lhe alteava no ânimo empedernido, calou a revolta e partilhou a farsa, afiançando confiar na menina que amavam por filha. Tentaria distraí-la, renová-la e, de acordo com ela, Márcia, procuraria incluí-la num roteiro de turismo a Buenos Aires, para o qual fora convidado por amigos, no banco. Marita esqueceria, esqueceria.
O entendimento avançava, mas o serviço nos convocou ao aposento próximo, onde a mágoa da jovem explodia, inarticulada, em vibrações de intensa dor.

Capítulo 10
 
Estirada no leito, chorava Marita, desconsolada.
As revelações ouvidas naquele diálogo, a curta distância, revolviam-lhe o coração, quais pinças de fogo. Sentia-se abandonada, desejava morrer.
Então – confirmava-se –, todo aquele devotamento de Gilberto não passava da superfície. Apropriara se-lhe da alma, empolgara-lhe os sentimentos, para deixá-la sem comiseração.
Recordava-se de que, realmente, semanas antes, indagara-lhe ele que outros idiomas conhecia. Algo vexada, informara que somente conseguira o curso primário. O moço retirara da algibeira uma composição de Shelley. Lera o inglês e traduzira para ela os versos lindos. Em seguida, aconselhara-lhe estudos suplementares à noite. Poderia auxiliá-la, relacionava-se com professores distintos.
Ela rira-se, queria o lar, a escola do lar com ele. Apenas ali, na decepção que a molestava, compreendia a extensão do arrufo com que se despedira. Ah! sim, aspirava ao casamento com moça culta. Ignorante! – dizia para si mesma – não passo de uma ignorante.
Marina era diferente, dominava outras línguas.
Tudo já estava tramado, deliberado.
À vista disso, a irmã recusava-lhe intimidade nos dias últimos.
Por mais a rodeasse de mimos, mais se afastava.
Agora reconhecia igualmente a causa de mostrar-se o rapaz enfastiado e irritadiço. Entretanto – perguntava-se, triste –, se ele a desprezava, assim, por que lhe abusara da confiança? Por que o arrebatamento com que lhe acorrentara a alma às inesquecíveis impressões da menina que se faz repentinamente mulher? Não selara com ela um ajuste de matrimônio? Não lhe testemunhavaextrema ternura nos encontros domingueiros, quando se entregavam a comunhão mais íntima?

Incapaz de duvidar da legitimidade do carinho que recebera, voltava-se mentalmente para a irmã que lhe surrupiava as mínimas alegrias. A nova infelicidade – conjeturava – seria culpa dela.
Com toda a certeza, Marina cobiçara o rapaz, a envolvê-lo na teia de artimanhas que entretecia como ninguém. Gilberto caíra-lhe no engodo. Ave no visco. Contudo, ao descobrir toda a trama, reconhecia-se irremediavelmente lesada. Debatia-se em pranto, sob o peso das considerações familiares. Era imperioso certificar-se de que era enjeitada e ignorante. Nada sobraria para ela, tudo para a outra. Marina possuía méritos, ela não.
A exposição de Dona Márcia, naquela hora, insuflara-lhe a tortura do réu que ouve sentença inapelável. Ainda assim, chorava, inconformada. A contingência de perder Gilberto induzia-lhe o sentimento a matar ou desaparecer. Rememorou as tragédias, lidas na imprensa, mas o fratricídio repugnava-lhe ao coração. A idéia do suicídio, contudo, qual semente a se lhe ocultar no imo do ser, evocada pelo esboço ligeiro da alma, como que germinara, de súbito. Acariciou-a, de leve, e a sugestão infeliz ganhou corpo.
Divagações negativas tomaram-na de assalto. Renunciar a Gilberto e largar os planos feitos doeriam muito mais que morrer – pensava, desolada. Mas seria justo acovardar-se, assim tanto?
Repeliu o estranho apelo e, conquanto as lágrimas, prometeu coragem a si própria. Lutaria pela felicidade. Explicar-se-ia com o rapaz, baniriam, juntos, a ameaça pendente. Entretanto, se Gilberto
não lhe aceitasse os argumentos, que fazer do destino, se, com o golpe sofrido à frente, percebia também o fantasma da esquisita inclinação do pai adotivo pela retaguarda? Por que a peça que a vida lhe pregava? Devia esquivar-se ao afeto do jovem que amava, numa consagração natural, para ganhar a paixão do homem maduro que se habituara a respeitar como pai e que lhe acenava com uma espécie de união para ela inaceitável? Estarrecia-se ao ouvi-lo naquela hora. Identificava-lhe

CONTINUA AMANHÃ

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