homem selvagem que lhe dormia habitualmente na polidez, espicaçado pelo ciúme.
Esfregando os dedos contra as palmas das mãos, num gesto que lhe particularizava o desagrado, levantou-se, deu alguns passos pela sala e resmungou:
– Ingratidão!
A esposa usufruía a cena com a volúpia de quem alcançava os próprios fins, porquanto, desde o princípio da conversação, aspirava a estabelecer um clima favorável à filha legítima, a detrimento da outra. Julgava que o marido, com semelhante exprobração, resumia numa palavra o asco que provavelmente albergaria contra o procedimento da pupila que desejava arredar. Muito distante da realidade, não percebia que a indignação dele se arraigava no azedume do apaixonado que se vê preterido e, por isso, ensaiava um sorriso triunfante...
Nós, porém, conseguíamos analisar-lhe as telas mentais e verificar quanto lhe doía o desprezo. Via-se, espiritualmente, ao pé do jovem, medindo forças. Ah! se lhe fosse dado enxergá-lo, naquela hora, ao alcance das mãos! Certo lhe despejaria todo o peso da cólera na constituição de menino e moço, esfrangalhandolhe os ossos...
– Comove-me a sua reação contra Marita!...
Registrando a frase reticenciosa da companheira, deu-se conta do papel desaconselhável que começava a assumir. Quase que se denunciara, de todo. Ultrapassara os limites da circunspeção que lhe cabia conservar no próprio interesse e deliberou recompor-se.
Reconheceu que Márcia lhe apreciava a repulsa, crendo vê-lo unicamente no lugar de pai, machucado pelas circunstâncias, e deixou que ela se acomodasse a essa interpretação, encastelandose, mentalmente, na defensiva. Reprimiu o desespero que o possuía, sentando-se, de novo, a relaxar os nervos tensos. Apagou exteriormente todos os sinais de excitação, aparentou calma súbita.
A senhora, que ambicionava amontoar vantagens para a filha, longe de imaginar-se iludida naquele jogo, em que marido e mulher se nos representavam dois parceiros astuciosos, nos golpes estudados um contra o outro, falou serena, presumindo controlar agora toda a situação:
– Sua atitude respeitável de pai me encoraja e me alegra. Graças a Deus, sinto em você o chefe da casa e da família.
Cláudio ouvia, atento.
É necessário que você saiba – prosseguiu ela – que Gilberto não quer coisa nenhuma com Marita, que vive a derreter-se sem razão. O rapaz é apaixonado por Marina e tudo indica possibilidades de um casamento vantajoso, que não podemos jogar fora.
O interlocutor ardiloso deduziu que chegara para ele a oportunidade da vingança. Fingindo desconhecer a trama de sentimentos em que ambas as jovens se enredavam, comentou, em voz alta, os novos aspectos do problema, a fim de ser claramente escutado por Marita, que sabia de atalaia, no quarto próximo. Depois de encarecer a excelência do caráter da filha adotiva, destacando o apreço e a ternura com que se dedicaria a protegê-la, acentuou, jocoso:
– Ah! o biltre!... então, essa farsa de vaguear com Marita, arrastando-a por aí, não é senão alcovitice e trampolinagem... O peralta está carambolando. É o bilhar dos namorados, bate-se numa bola para acertar em outra...
E relacionou pobres moças, traídas na confiança, explicou que Marita era suscetível de uma psicose de duras conseqüências.
Se Gilberto estava propenso a desposar Marina, que se manifestasse.
Não oporia embargos, no entanto, exigia franqueza. Dona Márcia, repentinamente lisonjeada, ao colher-lhe as disposições tão favoráveis, arrolou as confidências da filha.
O rapaz confessara-se. Admirava-lhe não só os encantos pessoais, mas gabava-lhe a educação fina. De começo, apenas se cumprimentavam, de quando em quando. Ele, porém, tivera necessidade da cooperação de alguém que o auxiliasse na tradução de alguns textos franceses. Marina expusera a competência adquirida.
O trabalho realizado erigia-se em característicos tão primorosos que obtivera louvor na Embaixada. Desde essa empresa, trabalhavam quase que unidos. Marina revelara-lhe que o próprio senhor Nemésio, sempre solícito, passara a nomeá-la por nora.
Cláudio, acintosamente, dizia, de quando em quando:
– Márcia, não estou ouvindo bem, fale um pouco mais alto.
A companheira, elevando sempre a modulação da voz, contou que os dois, embora a situação constrangedora da saúde de Dona Beatriz, no momento, traduziam poesias deliciosas de autores
ingleses, marginando-as de trechos sentimentais que lhes expressavam a ternura recíproca, compondo lindo álbum cuja leitura lhe arrancara lágrimas de enternecimento. O amor entre ambos era claro como água. Indispensável apoiarem a filha, na concretização de suas esperanças. Afirmava-se confortada em reconhecer, a tempo, que a cultura de Gilberto não se compadecia com as deficiências de Marita, para quem o moço não seria, por isso, um partido feliz. Asseverava, convicta, que competia a ele, Cláudio, e a ela a orientação do assunto. Ponderou ainda que o auxílio dispensado por Marina a Dona Beatriz estreitara as relações entre os jovens e, supondo o esposo agastado à vista de contrariedades prováveis para a filha adotiva, acrescentou, entre desabrida e chistosa, que Marita se arranjaria, na época oportuna. Inclinações de moças, problemas delas.
O marido não acreditou em tópico nenhum do que ouvira.
Pai, desiludira-se com a filha. As investidas noturnas pelos recantos boêmios,
Esfregando os dedos contra as palmas das mãos, num gesto que lhe particularizava o desagrado, levantou-se, deu alguns passos pela sala e resmungou:
– Ingratidão!
A esposa usufruía a cena com a volúpia de quem alcançava os próprios fins, porquanto, desde o princípio da conversação, aspirava a estabelecer um clima favorável à filha legítima, a detrimento da outra. Julgava que o marido, com semelhante exprobração, resumia numa palavra o asco que provavelmente albergaria contra o procedimento da pupila que desejava arredar. Muito distante da realidade, não percebia que a indignação dele se arraigava no azedume do apaixonado que se vê preterido e, por isso, ensaiava um sorriso triunfante...
Nós, porém, conseguíamos analisar-lhe as telas mentais e verificar quanto lhe doía o desprezo. Via-se, espiritualmente, ao pé do jovem, medindo forças. Ah! se lhe fosse dado enxergá-lo, naquela hora, ao alcance das mãos! Certo lhe despejaria todo o peso da cólera na constituição de menino e moço, esfrangalhandolhe os ossos...
– Comove-me a sua reação contra Marita!...
Registrando a frase reticenciosa da companheira, deu-se conta do papel desaconselhável que começava a assumir. Quase que se denunciara, de todo. Ultrapassara os limites da circunspeção que lhe cabia conservar no próprio interesse e deliberou recompor-se.
Reconheceu que Márcia lhe apreciava a repulsa, crendo vê-lo unicamente no lugar de pai, machucado pelas circunstâncias, e deixou que ela se acomodasse a essa interpretação, encastelandose, mentalmente, na defensiva. Reprimiu o desespero que o possuía, sentando-se, de novo, a relaxar os nervos tensos. Apagou exteriormente todos os sinais de excitação, aparentou calma súbita.
A senhora, que ambicionava amontoar vantagens para a filha, longe de imaginar-se iludida naquele jogo, em que marido e mulher se nos representavam dois parceiros astuciosos, nos golpes estudados um contra o outro, falou serena, presumindo controlar agora toda a situação:
– Sua atitude respeitável de pai me encoraja e me alegra. Graças a Deus, sinto em você o chefe da casa e da família.
Cláudio ouvia, atento.
É necessário que você saiba – prosseguiu ela – que Gilberto não quer coisa nenhuma com Marita, que vive a derreter-se sem razão. O rapaz é apaixonado por Marina e tudo indica possibilidades de um casamento vantajoso, que não podemos jogar fora.
O interlocutor ardiloso deduziu que chegara para ele a oportunidade da vingança. Fingindo desconhecer a trama de sentimentos em que ambas as jovens se enredavam, comentou, em voz alta, os novos aspectos do problema, a fim de ser claramente escutado por Marita, que sabia de atalaia, no quarto próximo. Depois de encarecer a excelência do caráter da filha adotiva, destacando o apreço e a ternura com que se dedicaria a protegê-la, acentuou, jocoso:
– Ah! o biltre!... então, essa farsa de vaguear com Marita, arrastando-a por aí, não é senão alcovitice e trampolinagem... O peralta está carambolando. É o bilhar dos namorados, bate-se numa bola para acertar em outra...
E relacionou pobres moças, traídas na confiança, explicou que Marita era suscetível de uma psicose de duras conseqüências.
Se Gilberto estava propenso a desposar Marina, que se manifestasse.
Não oporia embargos, no entanto, exigia franqueza. Dona Márcia, repentinamente lisonjeada, ao colher-lhe as disposições tão favoráveis, arrolou as confidências da filha.
O rapaz confessara-se. Admirava-lhe não só os encantos pessoais, mas gabava-lhe a educação fina. De começo, apenas se cumprimentavam, de quando em quando. Ele, porém, tivera necessidade da cooperação de alguém que o auxiliasse na tradução de alguns textos franceses. Marina expusera a competência adquirida.
O trabalho realizado erigia-se em característicos tão primorosos que obtivera louvor na Embaixada. Desde essa empresa, trabalhavam quase que unidos. Marina revelara-lhe que o próprio senhor Nemésio, sempre solícito, passara a nomeá-la por nora.
Cláudio, acintosamente, dizia, de quando em quando:
– Márcia, não estou ouvindo bem, fale um pouco mais alto.
A companheira, elevando sempre a modulação da voz, contou que os dois, embora a situação constrangedora da saúde de Dona Beatriz, no momento, traduziam poesias deliciosas de autores
ingleses, marginando-as de trechos sentimentais que lhes expressavam a ternura recíproca, compondo lindo álbum cuja leitura lhe arrancara lágrimas de enternecimento. O amor entre ambos era claro como água. Indispensável apoiarem a filha, na concretização de suas esperanças. Afirmava-se confortada em reconhecer, a tempo, que a cultura de Gilberto não se compadecia com as deficiências de Marita, para quem o moço não seria, por isso, um partido feliz. Asseverava, convicta, que competia a ele, Cláudio, e a ela a orientação do assunto. Ponderou ainda que o auxílio dispensado por Marina a Dona Beatriz estreitara as relações entre os jovens e, supondo o esposo agastado à vista de contrariedades prováveis para a filha adotiva, acrescentou, entre desabrida e chistosa, que Marita se arranjaria, na época oportuna. Inclinações de moças, problemas delas.
O marido não acreditou em tópico nenhum do que ouvira.
Pai, desiludira-se com a filha. As investidas noturnas pelos recantos boêmios,
CONTINUA AMANHÃ
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