segunda-feira, 15 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO -LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

que nos poderá, enfim, aplacar a sede. Pontos de apoio alongamse em toda parte, mas o pássaro viaja, léguas e léguas, suspirando por descansar na penugem do próprio ninho... 
Na fome física, todo alimento serve, mas no amor... 
No amor, a felicidade é semelhante ao aro de que o homem possui a metade e a mulher detém a outra. 
Para que a euforia vibre perfeita no círculo, é imperioso que as metades sejam da mesma substância. 
Ninguém alcança a fusão de um pedaço de ouro com um pedaço de madeira. 
Paganini tocou numa corda só; entretanto, a corda se harmonizava com ele. 
Jamais arrancaria no mundo o menor sinal do próprio gênio, se apenas dispusesse para o violino das cordas de cânhamo, ainda mesmo que essas cordas o desafiassem a toneladas. 
Cada homem, Cláudio, para realizar-se nos domínios da vitalidade e da alegria, há de encontrar a mulher magnética que lhe corresponde, companheira na afinidade absoluta, capaz de lhe oferecer a plenitude interior, que transcenda convenções e formas ...
Pausava-se a voz, por segundos, para continuar, suplicante, proclamando sofismas arguciosos:
– Vamos! Marita é nossa, nossa!... Somos homens sequiosos, sofredores... 
Apiedamo-nos de enfermos abandonados, administrando-lhes remédio seguro; somos o apoio certo de mendigos que tropeçam às tontas... 
Acaso, mereceremos simpatia menor? 
Os que enlouquecem, esfaimados de ternura, serão piores do que os infelizes, a se estirarem na rua por falta de pão? 
Você, Cláudio, tem amargado angustiosa carência. Um pedinte na praça não tem.
Compreendemos o caráter negativo da linguagem do Espírito desencarnado, quando em deploráveis condições de ignorância, mas acreditamos seja nossa obrigação consigná-la, nestas páginas, ainda mesmo esbatida qual se encontra, prevenindo criaturas sensíveis e afetuosas, que, às vezes, abdicam impensadamente do próprio raciocínio, arrojando-se em profundo sofrimento moral, em nome do coração. leve pitada de suas aflições. 
De que valem vencimentos fartos e experiências de lupanar, quando o amor verdadeiro grita insatisfeito na carne? 
Você vive no lar, à moda de cão na sarjeta. 
Escoiceado, ferido... Marita é a compensação. 
O cultivador, porventura, não tem direito ao fruto que amadurece? 
Você abrigou esta menina nos braços, embalou-a no peito; viu-lhe o crescimento, como quem acompanha a evolução da flor que desabrocha, e acabou descobrindo nela o seu tipo. 
Não estará você cansado de vê-la e desejá-la, ardentemente, todos os dias, resignando-se ao suplício da distância, vivendo tão perto?
– Criei-a, no entanto, como sendo minha própria filha... – suspirou Cláudio, crendo falar para si mesmo.
– Filha? – insistiu o sedutor. – Mero artifício social. Apenas mulher. 
E quem assegurará que ela também não espera por seu beijo com a sede da corça, presa ao pé da fonte? Você não é nenhum neófito; sabe que toda mulher estima render-se, em trabalhosa porfia.
Conjeturando-se dividido mentalmente em duas personalidades distintas, a de pai e a de enamorado, Cláudio argumentou, desencorajando-se.
Não desconhecia que a moça já se revelara. 
Elegera Gilberto, o rapaz com quem se dava a passeios freqüentes. 
Era impossível que o amasse, a ele, Cláudio, em segredo. Não alentava dúvidas.
Ciumento, acompanhara-os, discretamente, em excursões domingueiras, sem que lhe desconfiassem da presença ou do zelo ofendido.
Nunca lhes ouvira as palavras; entretanto, apanhara-lhes, às ocultas, os gestos equívocos. 
Admitia-se com razão para convidar o estouvado a compromisso. 
Calculara, calculara. 
Todavia, quando se inclinava a pedir conselho de autoridades policiais, chocarase com o imprevisto. Homem de prolongada vida noturna, passou a esbarrar com a filha, em recantos de prazer, não apenas na companhia de Nemésio Torres, o cavalheiro que desempenhava, junto dela, a função de chefe, mas igualmente com Gilberto, o filho, em posição comprometedora.
 Os desregramentos de Marina, desde muito, se haviam tornado para ele em calamidades inevitáveis. 
A princípio, atormentara-se. 
Pai contundido pela licenciosidade em família. 
Contudo, Márcia, a esposa, ditava os figurinos. 
Nos primeiros tempos do consórcio, emergira entre ambos a muralha da discórdia, da discórdia que lhes emanava do âmago, em ondas torvelinhantes de aversão instintiva, cuja existência não haviam sequer pressentido, de leve, antes do casamento.
De começo, rixas e discussões. 
Depois, a indiferença, o cansaço total um do outro. 
Aventuras unilaterais. 
Cada qual em seu caminho. Marina, evidentemente, seguira a trilha materna. 
Desligara-se dele. 
Classificava a filha, em seu juízo de homem, por mulher livre; contudo, tolerável no lar, enquanto exercesse a profissão que lhe assegurava sustento às fantasias. 
Em casa, habitualmente reuniam-se à mesa, a esposa, Marina e ele, à feição de três animais inteligentes, dissimulando o desprezo recíproco, através da convenção ou do chiste.
No conceito dele, porém, Marita definia-se à parte. 
Flor no ramo espinhoso daqueles antagonismos flagelantes.
Afastara-a, intencionalmente, na direção do serviço. 
Inventara meios de obrigá-la a tomar refeições em Copacabana, para que as picuinhas do círculo doméstico, no Flamengo, não lhe torturassem o espírito.
Espiava-lhe os passos, ouvia-lhe os chefes.
Uma vez instalada no exercício da nova condição, ele mesmo, quanto possível, manter-lhe-ia a independência.
Amando-a com entranhado carinho mesclado de egoísmo tirânico, feriam-lhe as humilhações que a esposa e a filha não regateavam a ela, no trato mais íntimo.

CONTINUA AMANHÃ

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