sexta-feira, 12 de outubro de 2012

SEXO E DESTINO - LIVRO DE CHICO XAVIER

CONTINUAÇÃO

tão baixo? não possuía acaso, mãe e irmãs, para as quais exigia valimento e respeito?
Lívido e atarantado, o colega escusou-se, asseverando, impudente, que não a supunha meninota antiquada.
Estava comprometido, noivo há meses, no entanto – sublinhou, cínico –, a seu modo de ver, era muito natural que ele e ela, Marita, ainda jovens, desfrutassem o tempo, acrescentando, ainda, em sua filosofia desabusada, que todo viajante consciente, embora conheça o caminho certo, é livre para saborear os frutos que pendam de plantas erguidas à margem.
Zombou-lhe das lágrimas e retirou-se, gargalhando, sarcástico, para depois hostilizá-la em serviço.
Ocorreram outros impedimentos e tentações.
O sobrinho do chefe, bonito rapagão recém-casado, insinuarase, começando por um presente de aniversário e terminando por solicitar-lhe colaboração no escritório, onde pretendeu arrancarlhe atitudes inconfessáveis. 
Angariara inimigo novo e amargara preterições.
Enquanto isso, observava que Marina se alterara, sensivelmente.
Favorecida pelo devotamento materno, alcançara diploma de contadora, situando-se com manifestas vantagens. 
E, decerto pelo motivo de ganhar expressivas somas na profissão, sustinha, desajuizadamente, prodigalidades e excessos. 
Figurinistas de prol, penteados extravagantes, bebedeiras e tafulices.
Nesse ponto das confidências mudas, o vulto de um jovem raiou, nítido. 
Ao estampá-lo na paisagem dos mais recônditos pensamentos, transfigurou-se a castigada criança.
Desanuviou-se-lhe o firmamento íntimo. 
Queixas arredadas, apreensões esquecidas.
Clareou-se a aura de tal modo, ao refletir o rapaz, que o fenômeno induzia às mais belas apreciações do entusiasmo poético.
Vaso pensante que incorpora o privilégio de esculpir-se e alindarse, à vontade, para encerrar a flor predileta. Lago consciente, mantendo a faculdade de esconder, de inopino, todos os detritos de suas águas, metamorfoseando-se em espelho suave e cristalino para retratar uma estrela.
Marita amava o escolhido com a firmeza da árvore que se levanta sobre a raiz principal de apoio, com a abnegação das mães, que preferem morrer, felizes no sacrifício extremo, se for essa a condição para que os filhos queridos logrem viver.
Enlevado com o painel, que se configurava qual retábulo vivo, incutindo respeito religioso, interroguei-me, quanto ao lugar onde teria visto quadro idêntico: jovem mulher plasmando aquele rosto no campo mental.
Vasculhei a memória e identifiquei-o. 
Era o adolescente cujo semblante repontava dos pensamentos de Marina, senhoreando-lhe o coração, de parceria com Nemésio.
Ambas as meninas jaziam espiritualmente imanadas a ele por laços idênticos. 
Cruzavam-se-lhes as preferências, sócias de análogo destino.
Relanceei o olhar sobre Neves, que me espreitava, atento, exercitando-se em serviço de análise psíquica, percebendo-lhe a face transida de mágoa.
Bastou recolher-me o sinal e aproximou-se, impulsivo, segredando-me, transtornado:
– Ainda não nos entendemos devidamente. 
Sabe você quem é este? É meu neto, Gilberto, filho de Beatriz...
Articulei breve aceno, rogando-lhe aguardar ensejo que fosse vantajoso à conversação, e graduei, dentro de mim, os efeitos do impacto emocional. Eu, que me abeirara daquela atormentada criança, imaginando-me na posição de um pai socorrendo uma filha, sopitei, a custo, o espanto que me assaltava, para não tresmalhar-me na inconveniência da compaixão destrutiva.
Não sabia de que modo o pesar me doía mais, se ao refletir em Marina, a dividir-se entre pai e filho, ou se ao concentrar a atenção naquela moça triste, profundamente lesada nos tesouros do sentimento.
Estanquei no íntimo as impressões que me sensibilizavam e prossegui, pesquisa adiante.
A muda confissão da jovem avançou em reminiscências vivas e francas.
Conhecera Gilberto, precisamente há seis meses, no gabinete do chefe. 
Ela prestava informações de serviço, ele representava os interesses do próprio pai, em negócios alusivos à venda de imóveis.
Com que deslumbramento lhe recebera os primeiros olhares afetuosos e indagadores! 
Elos de intensa afinidade passaram, desde então, a jungi-los um ao outro, sem que lhe fosse possível justificar a sede crescente de comunhão que a dominava.
Para surpresa maior, na excursão inicial que lhes precedera a série de passeios e entretenimentos felizes, soubera, satisfeita, que Marina, recentemente empregada, se fizera contadora da firma em que o genitor dele se destacava como sendo a figura mais importante.
Riram-se da coincidência com a ingenuidade de duas crianças. Marita confiara-se a ele, integralmente. Amava-o, sentia-se amada.
Desde que se lhe apoiara ao braço, pronto a enlaçá-la e protegê-la, mais vastos horizontes se lhe descerraram à alma. 
Tolerava as alfinetadas do cotidiano, transformando-as em notas de perdão e alegria. 
A Natureza desvendava-lhe encantos novos. 
Admitia que outra luz se lhe acendera nos olhos, permitindo-lhe descobrir a beleza do mar; detinha, sem explicá-la, certa música nos ouvidos para assinalar, contente e embevecida, as ternas arengas das
crianças e as vozes dos passarinhos. 
Desligara-se do calvário doméstico; o tempo voava, doce, ao coração. 
O amor correspondido anestesiara-lhe a sensibilidade. 
Nenhum peso a carregar, nenhuma noção de sacrifício.
Dera-se a Gilberto, copiando a passividade da planta que se rende ao cultivador, da fonte que se entrega ao sedento.
O filho de Nemésio Torres prometera-lhe casamento. 
Falava do futuro risonho, suscitava-lhe sonhos de maternidade e ventura.
Para fazê-la integralmente feliz, apenas aguardava a melhoria econômica que adivinhava perto.
Apesar de tudo, tinha agora o coração farpeado, abatido.
Convencia-se de que Gilberto se enfastiara, que ambos, precipitados à fome de prazer, haviam colhido, antes do tempo, a flor da felicidade que parecia frustra.
Marina adiantara-se. 
Sempre Marina...
Na véspera, surpreendera a irmã e Gilberto num colóquio, que não deixava dúvidas. 
Ouvira-lhes a conversação impregnada de ternura ardente, sem ser pressentida.
Nesse ponto das lembranças amargas, ao modo de ave repentinamente ferida, estirou o corpo desgovernado, abandonando-se a lágrimas convulsas.

CONTINUA AMANHÃ

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