CONTINUAÇÃO
Era sozinha em assuntos de seu sexo.
Mãe e filha empenhavam-se, deliberadamente, na abstenção de qualquer parecer, quando se tratasse das incertezas dela na escolha de figurinos.
Deixavam-na à revelia de qualquer assistência nos cuidados que uma jovem deve a si mesma, embora Dona Márcia, de quando em quando, a escutasse com ternura maternal,
em tudo o que se referia às suas indagações de menina e mulher, necessitada de instrução para a vida íntima.
Quando sobrevinha a possibilidade do intercâmbio afetuoso, certificava-se de que a esposa de Cláudio possuía vasto patrimônio de compreensão e carinho, abafado sob o peso de conveniências e convenções, semelhando tesouro enterrado nas raízes de
sólido espinheiro.
Aproveitava-se dessas horas de efusão entre ambas, exibindolhe todas as dúvidas e perplexidades que se lhe estacavam na imaginação, aguardando a brecha propícia.
Dona Márcia afigurava-se largar distâncias e respondia-lhe entre beijos, demonstrando vivamente que o lume da dedicação e da confiança de outros tempos não se lhe arrefecera no coração.
Sorria, encantava-se.
Expandia-se-lhe a meiguice maternal, em apontamentos sábios e doces.
Suprimia-lhe a insipiência no trato com os problemas começantes da vida feminina, dando-lhe a impressão de haver reencontrado a mãezinha, que acreditara possuir ao pé do berço, quando aquelas mãos belas e finas, agora distanciadas, lhe afagavam a cabeleira.
Entretanto, o momento luminoso escoava-se, rápido.
Marina chegava e turvava-se o ambiente.
Assistia, espantada, à transformação que se operava de improviso.
A interlocutora comprazia-se num espetáculo de personalidade dúplice.
Ocultava-se a mãezinha espiritual, afável e acolhedora, e aparecia Dona Márcia, avalentoada e cortês, na atmosfera psíquica.
Inventava, de repente, alguma atividade em aposento vizinho, dava-lhe incumbências a distância, a fim de apartá-la.
Assumia ares diferentes. Queixava-se subitamente de dores que, até então, jaziam ignoradas.
Ante a reviravolta, analisava o reverso do quadro.
Ambas, unidas, completavam-se em pequeninas torpezas para deprimi-la, humilhá-la. Diminuta mancha no vestuário constituía razão para sarcasmo; ligeira indisposição orgânica atraía-lhe complicada série de admoestações jocosas e indiscretas. Concediam-lhe, raramente, a honra da companhia para compras no centro.
E se as casas comerciais visitadas não dispunham, eventualmente, de recursos mobilizáveis na entrega de encomendas, não se pejavam, mãe e filha, de carregá-la com pacotes diversos, exercitando crueldade risonha nos pejorativos com que lhe agravavam o constrangimento e a subalternidade.
Dona Márcia e Marina, juntas, à frente dela, significavam provação inqualificável que lhe competia agüentar em silêncio.
Nesses instantes, sentia o coração descompassado, em desconforto indizível, como se estivesse encantoada num teste de tolerância e paciência, perante examinadores que lhe avaliavam as reações, entre o chiste e a impiedade.
Cedo percebeu que a irmã, filha única, não abriria mão de ínfima parcela dos mimos caseiros, de que se supunha senhora.
Dominado o segredo de sua origem, modificara a conduta para com ela.
Tramava motivos para biografá-la, nas conversações com as amigas, suprimindo, previamente, quaisquer dúvidas, suscetíveis de ocorrer, com relação às duas, no meio social. Criticava-
lhe os gostos, as atitudes. E a genitora não fazia mistério na tomada de posição.
Em separado, não vacilava ceder-lhe a ternura que vinha do passado, enriquecida talvez pela compaixão que ela, moça pobre, inspirava no presente.
Isso, porém, exacerbava-lhe a secura.
Ansiava repouso em dedicações estáveis.
Pesava-lhe a solidão, sem qualquer parente consangüíneo que lhe disputasse os vínculos da amizade.
Mensagens aos familiares de Aracélia nunca mereceram resposta.
Informações procedentes da remota cidade em que sua mãe nascera inteiraram-na, por fim, de que todos eles haviam demandado outras regiões do país, apetecendo melhor sorte.
Retinha suficiente autocrítica e discernia a situação.
Estava só.
Marita, que conjeturava reaver lembranças por impulso deliberado, franqueou o propósito de recrear-se para dar conta de si, como quem se propõe alijar, por momentos, a carga que transporta, a fim de interrogar-se, quanto aos empeços do caminho.
Afrouxamos, com naturalidade, a observação aguda com que lhe acompanhávamos a exposição silenciosa.
Aliviada, indagou de si mesma se não fora o insulamento a causa de exagerar tão cedo a necessidade de companhias diferentes das que lhe traçavam no lar o estreito círculo de provas.
Encerrada nos pensamentos que lhe armavam as fantasias e
receando exteriorizá-los, pelo temor do ridículo, recorrera à evasão.
Ave cansada pelo exercício prematuro das próprias asas, inquiria
por que se lhe recusara alimento afetivo no ninho, onde
conseguira distendê-las.
Antes, porém, que se acomodasse em algum esconderijo da mente, para fixar-se em contristações inúteis, solicitamo-la a que viesse, por gentileza, em apoio da análise que empreendíamos, no intuito de auxiliá-la e protegê-la.
CONTINUA AMANHÃ
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