CONTINUAÇÃO
socorro à filha em dificuldade.
A mensageira anônima recolocoume no lar, despedindo-se, delicada; e depois disso não mais a vi, pelo que, ainda agora, me lembro dela, positivamente intrigado...
Ensaiava alguma observação reconfortante, rememorando minhas experiências, quando Neves, interpretando-me os pensamentos, obtemperou depois de longa pausa:
– Você, André, nunca se viu defrontado por acontecimentos assim desagradáveis?
Recordei, emocionadamente, as primeiras impressões que me haviam transtornado a sensibilidade, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas as telas em que me surpreendera desanimado, excitado, dilacerado, vencido...
As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconheceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração.
Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor, assimilando-lhe o torturado influxo mental, e comentei:
– Sim, meu amigo, atravessada a grande barreira, os meus problemas, a princípio, foram enormes...
Entretanto, não foi possível desabafar-me. Cavalheiro maduro e simpático penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber-nos. Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:
– É Nemésio, meu genro...
O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bem-posta, escutou prolongado suspiro. Lançou-se, incontinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo. Marina veio recebê-lo com amável sorriso, conduzindo-o à cabeceira da senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.
Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou.
Trocando com ela enternecido olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo que lhe alisava a descuidada cabeleira.
A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:
– Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia...
A pobre criatura perdeu a casa quase que totalmente...
Ensaiava alguma observação reconfortante, rememorando minhas experiências, quando Neves, interpretando-me os pensamentos, obtemperou depois de longa pausa:
– Você, André, nunca se viu defrontado por acontecimentos assim desagradáveis?
Recordei, emocionadamente, as primeiras impressões que me haviam transtornado a sensibilidade, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas as telas em que me surpreendera desanimado, excitado, dilacerado, vencido...
As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconheceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração.
Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor, assimilando-lhe o torturado influxo mental, e comentei:
– Sim, meu amigo, atravessada a grande barreira, os meus problemas, a princípio, foram enormes...
Entretanto, não foi possível desabafar-me. Cavalheiro maduro e simpático penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber-nos. Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:
– É Nemésio, meu genro...
O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bem-posta, escutou prolongado suspiro. Lançou-se, incontinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo. Marina veio recebê-lo com amável sorriso, conduzindo-o à cabeceira da senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.
Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou.
Trocando com ela enternecido olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo que lhe alisava a descuidada cabeleira.
A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:
– Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia...
A pobre criatura perdeu a casa quase que totalmente...
É necessário que você lhe garanta abrigo seguro... Penso nela com os filhos ao desamparo. Tire-me dessa aflição...
O interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:
– Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...
– Receio partir de uma hora para outra...
– Partir para onde?
Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sacou um sorriso amargo e prosseguiu:
– Enquanto você estiver em tratamento, nossas viagens estão sustadas. Não é hora de São Lourenço...
– Minha estação curativa será outra.
– Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa? Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescença, já, já... Amanhã tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado.
O interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:
– Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...
– Receio partir de uma hora para outra...
– Partir para onde?
Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sacou um sorriso amargo e prosseguiu:
– Enquanto você estiver em tratamento, nossas viagens estão sustadas. Não é hora de São Lourenço...
– Minha estação curativa será outra.
– Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa? Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescença, já, já... Amanhã tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado.
Você estará restabelecida em breve e ambos iremos ao primeiro café em casa de nossa Olímpia...
Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu reanimar-se. Entreabriu-se-lhe a boca num largo sorriso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.
Aqueles olhos imensamente lúcidos derramaram duas lágrimas de felicidade que o esposo enxugou com gracioso gesto.
Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu reanimar-se. Entreabriu-se-lhe a boca num largo sorriso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.
Aqueles olhos imensamente lúcidos derramaram duas lágrimas de felicidade que o esposo enxugou com gracioso gesto.
Na face amarelada, lampejaram raios de confiança.
Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar. Manifestando o próprio reconforto, solicitou de Marina uma chávena de leite.
A enfermeira atendeu, comovida.
Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar. Manifestando o próprio reconforto, solicitou de Marina uma chávena de leite.
A enfermeira atendeu, comovida.
E, enquanto a doente sorvia o líqüido, gole a gole, refleti na bondade daquele homem que a palavra do companheiro me apresentara noutras cores.
O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro.
Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração.
O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro.
Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração.
Dispensava-lhe a compreensão de um amigo, a ternura de um pai.
Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu, defrontado por indizível assombro.
Alguns momentos escoaram-se, rápidos.
Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.
Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu a Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou a destra alva e leve.
O marido passou, então, a falar brandas palavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro.
Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu, defrontado por indizível assombro.
Alguns momentos escoaram-se, rápidos.
Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.
Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu a Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou a destra alva e leve.
O marido passou, então, a falar brandas palavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro.
Contemplei Nemésio, admirado.
Alteravam-se-lhe agora os pensamentos, que me pareceram, então, incompatíveis com a sensação de respeitabilidade que ele nos inspirava.
Voltei-me, instintivamente, para Neves e ele, indicando-me as duas mãos que se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:
– Este homem é um enigma.
Voltei-me, instintivamente, para Neves e ele, indicando-me as duas mãos que se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:
– Este homem é um enigma.
CONTINUA AMANHÃ
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