CONTINUÇÃO
CAPÍTULO 50
A DESENCARNAÇÃO DE FERNANDO
Quando Aniceto retirou a destra da minha fronte, perdi a possibilidade
de prosseguir nas observações do infinitesimal.
Minha
visão abrangia minúcias muito importantes ao interesse comum;
entretanto, estava longe daquele poder de apreensão que me
transmitira o mentor amigo, ao contacto do seu elevado potencial
magnético.
Centralizando minhas energias visuais, analisava ainda o sistema
ósseo, o sangue, os tecidos, os humores, mas aquelas batalhas
microscópicas haviam desaparecido como por encanto.
De
qualquer modo, porém, minha surpresa era enorme, porque agora
identificava, em mim mesmo, a potencialidade do “raio X.”
Aniceto, depois de proporcionar a Vicente o mesmo estudo,
movimentava providências novas.
No aposento, conservava-se determinado número de parentes
aflitos.
Um médico encarnado examinava o moribundo, com
atenção.
Foi aí que as duas entidades que se mantinham no quarto,
e que apenas nos haviam dispensado a usual saudação, se aproximaram
do nosso instrutor, solicitando-lhe uma cooperação mais
enérgica.
– Por favor, nobre amigo – disse a irmã que havia sido genitora
do moribundo –, ajude-nos a retirar meu pobre filho do corpo
esgotado. Há muitas horas, estamos à espera de alguém que nos
possa auxiliar neste transe. Tenho procurado confortá-lo, mas em
vão! – acentuou a nobre senhora em tom lastimoso – ele continua
num estado de incompreensão dolorosa e terrível.
Está absolutamente
preso às sensações de sofrimento físico, como esteve ligado,
no curso da existência, às satisfações do corpo.
Aniceto concordou, acrescentando:
– Notam-se, de fato, grandes lacunas na expressão mental do
moribundo.
Vê-se que atravessou a vida humana obedecendo mais
ao instinto que à razão.
Observam-se-lhe no mundo celular gestos
complexos de indisciplina.
Poderemos, contudo, ajudá-lo a desvencilhar-
se dos laços mais fortes, no que se refere ao círculo
carnal.
– Será um caridoso obséquio – redargüiu a genitora, aflita.
– A irmã está incumbida de encaminhá-lo? – perguntou o instrutor,
compreendendo a magnitude da tarefa. – Precisamos ponderar,
quanto a isto, porque o desprendimento integral se verificará
dentro de poucos minutos.
Ela esboçou um gesto triste e respondeu:
– Desejaria sacrificar-me ainda um pouco por meu desventurado
Fernando, mas apenas obtive permissão para socorrê-lo nos
seus últimos instantes.
Meus superiores prometem ajudá-lo, mas
aconselharam-me a deixá-lo entregue a si mesmo durante algum
tempo.
Fernando precisa reconsiderar o passado, identificar os
valores que, infelizmente, desprezou.
As lágrimas e os remorsos,
na solidão do arrependimento, serão portadores de calma ao seu
espírito irrefletido. Grande é o meu desejo de conchegá-lo ao
coração, regressando aos dias que já se foram; todavia, não posso
prejudicar, com a minha ternura materna, a marcha do serviço
divino. Fernando, em verdade, é filho do meu afeto; contudo,
tanto ele como eu, temos contas com a Justiça do Eterno e, no que
respeita a mim, estou cansada de agravar os meus débitos.
Não
devo contrariar os desígnios de Deus.
A essa altura do diálogo, interveio o clínico espiritual que nos
encaminhara até ali, informando, atencioso:
– Nossa amiga tem razão.
Fernando não poderá acompanhála,
mas tão nobre tem sido a intercessão materna que tenho instruções para conduzi-lo a lugar seguro, a uma casa de socorro, onde
poderá colher o melhor proveito do sofrimento, porquanto será
asilado em zona vibratória inacessível às influências inferiores e
criminosas, embora situada em regiões baixas.
– Já sei – murmurou Aniceto com grave entono –, trata-se de
medida muito acertada.
Em seguida, acentuou como quem não tinha tempo a perder:
– A aflição dos familiares encarnados, aqui presentes, poderá
dificultar-nos a ação. Observem como todos eles emitem recursos
magnéticos em benefício do moribundo.
De fato, uma rede de fios cinzentos e fracamente iluminados
parecia ligar os parentes ao enfermo quase morto.
– Tais socorros – tornou Aniceto – são agora inúteis para devolver-
lhe o equilíbrio orgânico.
Precisamos neutralizar essas
forças, emitidas pela inquietação, proporcionando, antes de tudo,
a possível serenidade à família.
E, aproximando-se ainda mais do agonizante, tomou a atitude
do magnetizador, exclamando:
– Modifiquemos o quadro do coma.
Após alguns minutos em que nosso mentor operava, secundado
pelo nosso respeitoso silêncio, ouvimos o médico encarnado
anunciar aos parentes do moribundo:
– Melhoram os prognósticos.
A pulsação, inexplicavelmente,
está quase normal.
A respiração tende a calmar-se.
Três senhoras suspiraram aliviadas.
– Dona Amanda – dirigiu-se o assistente à esposa do moribundo
–, convém que vá repousar, levando as suas cunhadas.
O
senhor Fernando está muito tranqüilo e a situação é francamente
favorável. Ficaremos velando, o senhor Januário e eu.
As senhoras e mais dois cavalheiros, que se prontificavam a
retirar, agradeceram satisfeitos e comovidos.
Permaneceram no
aposento somente o médico e um irmão do agonizante.
A melhora
súbita tranqüilizara a todos.
E, aos poucos, os fios cinzentos que
se ligavam ao enfermo desapareceram sem deixar vestígios.
– Abramos a janela – disse o médico satisfeito –, o ar talvez
acelere as melhoras do nosso amigo.
O senhor Januário atendeu, abrindo a ampla vidraça.
Fundamente espantado, reparei que três rostos horríveis pela
expressão diabólica surgiram, de repente, no peitoril, e interrogaram
em voz alta:
– Como é?
Fernando vem ou não vem?
Ninguém respondeu.
Notei, porém, que Aniceto lhes dirigiu
significativo olhar, compelindo-os, tão só com essa medida, a
desaparecer.
Meia hora passou, dentro da qual o médico e o senhor Januário,
quase despreocupados do agonizante, pelas melhoras havidas,
encetaram uma conversação animada, relativamente a problemas
do mundo.
Aproveitou Aniceto a serenidade ambiente e começou a retirar
o corpo espiritual de Fernando, desligando-o dos despojos,
reparando eu que iniciara a operação pelos calcanhares, terminando
na cabeça, à qual, por fim, parecia estar preso o moribundo por
extenso cordão, tal como se dá com os nascituros terrenos. Aniceto
cortou-o com esforço.
O corpo de Fernando deu um estremeção,
chamando o médico humano ao novo quadro.
A operação não
fora curta e fácil.
Demorara-se longos minutos, durante os quais
vi o nosso Instrutor empregar todo o cabedal de sua atenção e
talvez de suas energias magnéticas.
A família do morto, informada pelo senhor Januário, aflita
penetrou no quarto, ruidosamente.
A genitora do desencarnado,
porém, auxiliada por Aniceto e pelo facultativo espiritual que nos
levara até ali, prestou ao filho os socorros necessários.
Daí a
instantes, enquanto a família terrena se debruçava em pranto sobre
o cadáver, a pequena expedição constituída por três entidades, as
duas senhoras e o clínico, saía conduzindo o desencarnado ao
instituto de assistência, reparando eu, contudo, que não saíam
utilizando a volitação, mas caminhando como simples mortais.
Sentia-me fortemente impressionado.
Intrigava-me, sobretudo,
o aparecimento daqueles rostos satânicos quando se abrira a
janela.
Porque semelhante menosprezo a um agonizante?
Retirando-nos da residência, o Instrutor me fitou atento e, antes
que formulasse qualquer pergunta, esclareceu:
– Não se preocupe tanto, André, com os vagabundos que esperavam
nosso irmão infeliz – Só não penetraram na câmara de
dor porque a nobre presença maternal impedia tal assédio.
E, depois de calar-se por momentos, acrescentou:
– Cada criatura, na vida, cultiva as afeições que prefere.
Fernando
estimava os companheiros desregrados.
Não é, pois, estranhável,
que tenham vindo esperá-lo na estação de volta à existência
real.
Paulo de Tarso, no capitulo 12 da Epístola aos Hebreus,
afirma que o homem está cercado de uma grande “nuvem de
testemunhas”.
Ora, essa informação foi endereçada ao espírito
humano há quase vinte séculos.
Cada um, pois, tem o séquito
invisível a que se devota na Terra.
Mais tarde, quando a coletividade
apreender a grandeza das lições evangélicas, todo homem
terá cuidado na escolha de suas testemunhas.
CONTINUA AMANHÃ
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