CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 45
MENTE ENFERMA
Observando e trabalhando sempre, Aniceto considerou:
– Aqui não comparecem apenas os desencarnados enfermos.
Reparem os encarnados, igualmente.
Entre o nosso círculo e a
assembléia dos irmãos corporificados, a percentagem de trabalhadores
em relação ao número de doentes e necessitados é quase a
mesma.
Designando um cavalheiro aprumado e bem posto, que se
mantinha em palestra com o senhor Bentes, doutrinador naquele
grupo, acrescentou:
– Vejam este amigo rodeado de sombra, em conversação com
o colaborador de nossa irmã Isabel.
Ouçam-lhe a palavra e, depois,
ajuízem.
Com efeito, o cavalheiro indicado rodeava-se de pequenas
nuvens, mormente ao longo do cérebro.
Fixando nele a atenção,
eu o ouvia distintamente:
– Há muito – asseverava com ênfase – freqüento as reuniões
espiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto
– e sorriu irônico –, ou a minha infelicidade é maior que a dos
outros ou estamos diante de mistificação mundial.
Atento à respeitosa atitude do orientador encarnado, prosseguia,
orgulhoso:
– Tenho estudado muitíssimo, não me furtando ao crivo da
razão rigorosa.
Já devorei extensa literatura relativa à sobrevivência
humana e, todavia, nunca obtive uma prova.
O Espiritismo
está cheio de teses sedutoras, mas o terreno se mostra cheio de
dúvidas.
A obra de Kardec, inegavelmente, representa extraordinária
afirmação filosófica; entretanto, encontramos com Richet
um acervo de perspectivas novas.
A metapsíquica corrigiu muitos
vôos da imaginação, trazendo à análise pública observações mais
profundas sobre os desconhecidos poderes do homem.
No exame
dessas verdades científicas, o mediunismo foi reduzido em suas
proporções.
Precisamos dum movimento de racionalização, ajustando
os fenômenos a critério adequado. Todavia, meu caro Bentes,
vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes das
demonstrações exatas.
A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio,
considerando:
– Concordo, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir
a toda espécie de considerações sérias; contudo, creio que a doutrina
é um conjunto de verdades sublimes, que se dirigem, de
preferência, ao coração humano.
É impossível auscultar-lhe a
grandeza divina com a nossa imperfeita faculdade de observação,
ou recolher-lhe as águas puras com o vaso sujo dos nossos raciocínios
viciados nos erros de muitos milênios.
Ao demais, temos
aprendido que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico
em leis de menor esforço.
Lembremos que a missão do Evangelho,
com o Mestre, foi precedida por um esforço humano de
muitos séculos.
Antes de morrerem os cristãos nos circos do
martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrificados?
Primeiramente,
devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos
a bênção.
A Bíblia, sagrado livro dos cristãos, é o encontro
da experiência humana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada
no Velho Testamento, com a resposta celestial, sublime e pura, no
Evangelho de Nosso Senhor.
O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria
de modo vago, entre a ironia e a vaidade ofendida.
Bentes, contudo,
não perdeu a oportunidade e continuou:
– Se todo serviço sério da existência humana é alguma coisa
de sagrado aos nossos olhos, que dizer da expressão divina no
trabalho planetário?
E considerando a essência do serviço na
organização do mundo, que seria de nós se um punhado de espíritos
amigos e sábios nos arrebatassem à visão ampla de orbes
superiores, impelindo-nos para eles, precipitadamente, tão só pelo
fato de nos dispensarem, como indivíduos; uma estima santa?
Estaríamos preparados para a mudança radical? Saberemos o que
venha a ser a vida num orbe superior?
Teremos trabalhado bastante
para entender os. divinos desígnios? E a Terra?
E as nossas
milenárias dívidas para com o planeta que nos tem suportado as
imperfeições? Como residir nos andares mais altos, sem drenar os
pântanos que jazem em baixo?
Estas considerações tomam-se
imprescindíveis no exame de argumentação como a sua, porquanto
não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosas de
um rio caudaloso, observando tão somente as gotas recolhidas no
dedal das nossas limitações.
O pesquisador renitente acentuou a expressão irônica do rosto
e revidou:
– Você fala como homem de fé, esquecendo que meu esforço
se dirige à razão e à ciência.
Quero referir-me às ilações inevitáveis
da consulta livre, às farsas mediúnicas de todos os tempos.
Você está informado de que cientistas inúmeros examinaram as
fraudes dos mais célebres aparelhos do mediunismo, na Europa e
na América.
Ora, que esperar de uma doutrina confiada a mistificadores
continentais?
Bentes respondeu, muito sereno e ponderado:
– Está enganado, meu amigo.
Estaríamos laborando em erro
grave, se colocássemos toda a responsabilidade doutrinária nas
organizações mediúnicas.
Os médiuns são simples colaboradores
do trabalho de espiritualização.
Cada um responderá pelo que fez
das possibilidades recebidas, como também nós seremos compelidos
a contas necessárias, algum dia. Não poderíamos cometer o
absurdo de atribuir a concentração de todas as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos a novos cultos
de adoração. A doutrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura,
inacessível aos pruridos individualistas de qualquer de nós, fonte
na qual cada companheiro deve beber a água da renovação própria.
Quanto às fraudes mediúnicas a que se refere, é forçoso
reconhecer que a pretensa infalibilidade científica tem procurado
converter os mais nobres colaboradores dos desencarnados em
grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório.
Os pesquisadores,
atualmente batizados como metapsiquistas, são estranhos
lavradores que enxameiam no campo de serviço sem nada
produzirem de fundamentalmente útil. Inclinam-se para a terra,
contam os grãos de areia e os vermes invasores, determinam o
grau de calor e estudam a longitude, observam as disposições
climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas, com grande
surpresa para os trabalhadores sinceros, desprezam a semente.
O interlocutor deixou de sorrir e observou:
– Vamos ver, vamos ver... Espero a mensagem dos meus com
os sinais iniludíveis da sobrevivência, após a morte...
Aniceto nos tocou de leve, e falou:
– Repararam como este homem traz a mente enfermiça?
É um
dos curiosos doentes, encarnados.
Tem vasta cultura e, todavia,
como traz o sentimento envenenado, tudo quanto lhe cai nos
raciocínios participa da geral intoxicação.
É pesquisador de superfície,
como ocorre a muita gente.
Tudo espera dos outros, examina
seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo.
Quer a realização
divina sem o esforço humano; reclama a graça, formulando a
exigência; quer o trigo da verdade, sem participar da semeadura;
espera a tranqüilidade pela fé, sem dar-se ao trabalho das obras;
estima a ciência, sem consultar a consciência; prefere a facilidade,
sem filiar-se à responsabilidade, e, vivendo no torvelinho de
continuadas libações, agarrado aos interesses inferiores e à satisfação dos sentidos físicos, em caráter absoluto, está aguardando
mensagens espirituais...
Estávamos admirados, ante as conclusões interessantes do
instrutor amigo.
Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou:
– Afinal de contas, que deseja este homem?
Aniceto sorriu e respondeu:
– Também ele teria imensas dificuldades para responder.
Para
nós outros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda
não se dispuseram a procurar o alivio, pelo demasiado apego à
sensação.
CONTINUA AMANHÃ
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