CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 44
ASSISTÊNCIA
A paisagem de sofrimento, desdobrada aos nossos olhos,
lembrava-me o ambiente das Câmaras de Retificação.
Entendeu-se Aniceto com Isidoro e falou, resoluto:
– Mãos à obra! Distribuamos alguns passes de reconforto!
– Mas – objetei – estarei preparado para trabalho dessa natureza?
– Porque não? – indagou o instrutor em voz firme – toda
competência e especialização no mundo, nos setores de serviço,
constituem o desenvolvimento da boa vontade.
Bastam o sincero
propósito de cooperação e a noção de responsabilidade para que
sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trabalho novo.
Semelhantes afirmativas estimularam-me o coração.
Recordei Narcisa, a dedicada irmã dos infortunados, que
permanecia, em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como
prisioneira do sacrifício. Pareceu-me, ainda, ouvir-lhe a voz fraterna
e carinhosa – “André, meu amigo, nunca te negues, quanto
possível, a auxiliar os que sofrem.
Ao pé dos enfermos, não olvides
que o melhor remédio é a renovação da esperança; se encontrares
os falidos e os derrotados da sorte, fala-lhes do divino
ensejo do futuro; se fores procurado, algum dia, pelos espíritos
desviados e criminosos, não profiras palavras de maldição. Anima,
eleva, educa, desperta, sem ferir os que ainda dormem.
Deus
opera maravilhas por intermédio do trabalho de boa vontade!”
Sem mais hesitação, dispus-me ao serviço.
Aniceto designou-me um grupo de seis enfermos espirituais,
acentuando: Aplique seus recursos, André. Com a nossa colaboração, os
amigos em tarefa nesta casa poderão atender a responsabilidades
diferentes e também imperiosas.
Os mais apagados trabalhadores
do bem rejubilem-se pela exemplificação nas lutas comuns e
edifiquem-se no Senhor Jesus, porque nenhuma de suas manifestações
fica perdida no espaço e no tempo.
Naquele instante em
que fora chamado a prestar auxílios reais, eu não recorria aos
meus cabedais científicos, não me reportava tão somente à técnica
da medicina oficial, a que me filiara no mundo, mas recordava
aquela Narcisa humilde e simples, das Câmaras de Retificação,
enfermeira devotada e carinhosa, que conseguia muito mais com
amor do que com medicações.
Aproximei-me duma senhora profundamente abatida, lembrando
o exemplo da generosa amiga de “Nosso Lar”, entendendo
que não deveria socorrer utilizando apenas a firmeza e a energia,
mas também a ternura e a compreensão.
– Minha irmã – disse, procurando captar-lhe a confiança –,
vamos ao passe reconfortador.
–
Ai! ai! – respondeu a interpelada – nada vejo, nada vejo!
Ah! o tracoma! Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida
diferente... Como recuperar a vista?! Quero ver, quero ver!...
–
Calma – respondi, encorajado –, não confia no Poder de Jesus?
Ele continua curando cegos, iluminando-nos o caminho,
guiando-nos os passos!
Somente mais tarde lembrei que, naquele instante, olvidara a
curiosidade doentia, não pensei na impressão deixada pelo tracoma
naquele organismo espiritual, nem me preocupei com a expressão
propriamente científica do fenômeno, vendo, apenas, à
minha frente, uma irmã sofredora e necessitada.
E, à medida que
me dispunha a observar a prática do amor fraternal, uma claridade
diferente começou a iluminar e a aquecer-me a fronte.
Lembrando a influência divina de Jesus, iniciei o passe de alivio
sobre os olhos da pobre mulher, reparando que enorme placa
de sombra lhe pesava na fronte.
Pronunciando palavras de animação,
às quais ligava a melhor essência de minhas intenções, concentrei
minhas possibilidades magnéticas de auxílio nessa zona
perturbada.
Dentro de alguns instantes, a desencarnada desferiu
um grito de espanto.
– Vejo! Vejo! – exclamou, entre o assombro e a alegria –
grande Deus! grande Deus!
E ajoelhando-se, num movimento instintivo para render graças,
dirigia-me a palavra, comovidamente:
– Quem sois vós, emissário do bem?
Dominava-me profunda emoção, que não conseguia sofrear.
Confundia-me a bondade do Eterno.
Quem era eu para curar
alguém?
Mas a alegria daquela entidade, libertada das trevas,
afirmava a ocorrência, na qual não queria acreditar.
A luz daquela
dádiva como que mostrava mais fortemente o fundo escuro de
minhas imperfeições individuais e o pranto inundou-me as faces,
sem que pudesse retê-lo nos recônditos mananciais do coração.
Enquanto a enferma espiritual se desfazia em lágrimas de louvor,
também eu me absorvia numa onda de pensamentos novos.
O
acontecimento surpreendia-me.
Desejava socorrer o doente próximo
e, contudo, estava enlaçado em singular deslumbramento
intimo. Aniceto, porém, aproximou-se delicadamente e falou em
voz baixa:
– André, a excessiva contemplação dos resultados pode prejudicar
o trabalhador.
Em ocasiões como esta, a vaidade costuma
acordar dentro de nós, fazendo-nos esquecer o Senhor.
Não olvides
que todo o bem procede d'Ele, que é a luz de nossos corações.
Somos seus instrumentos nas tarefas de amor.
O servo fiel não é
aquele que se inquieta pelos resultados, nem o que permanece
enlevado na contemplação deles, mas justamente o que cumpre a
vontade divina do Senhor e passa adiante.
Aquelas palavras não poderiam ser mais significativas, O generoso
mentor voltou ao serviço a que se entregara, junto de
outros irmãos, e, valendo-me do amoroso aviso, dirigi-me à reconhecida
senhora, acentuando:
– Minha amiga, agradeça a Jesus e não a mim, que sou apenas
obscuro servidor.
Quanto ao mais, não se impressione em demasia
com a visão dos aspectos exteriores; volte o poder visual para
dentro de si mesma, para que possa consagrar ao Senhor da Vida
os sublimes dons da visão.
Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras,
que lhe pareceram, talvez, inoportunas e transcendentes, mas,
novamente firme na compreensão do dever, acerquei-me do enfermo
próximo.
Tratava-se dum infeliz irmão que falecera na
Gamboa, vitimado pelo, câncer.
Toda a região facial apresentavase
com horrífico aspecto.
Apliquei os passes dê reconforto, ministrando
pensamentos e palavras de bom ânimo, e reparei que o
pobrezinho se sentia tomado de considerável melhora. Prometilhe
interesse amigo, a fim de internar-se em alguma casa espiritual
de tratamento, recomendando que preparasse a vida mental para
colher semelhante benefício, oportunamente.
Em seguida, atendi a
dois ex-tuberculosos do Encantado, a uma senhora que desencarnara
em Piedade, em conseqüência de um tumor maligno, e a um
rapaz de Olaria, que se desprendera num choque operatório.
Nenhum
destes quatro últimos, contudo, manifestou qualquer alivio.
Persistiam as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenômenos
psíquicos de sofrimento.
Terminada a tarefa que me fora cometida, reuni-me ao nosso
instrutor e Vicente, que me esperavam a um canto da sala.
– As atividades de assistência – exclamou Aniceto, cuidadoso
– se processam conforme observam aqui.
Alguns se sentem cura
dos, outros acusam melhoras e a maioria parece continuar impermeável
ao serviço de auxílio.
O que nos deve interessar, todavia, é
a semeadura do bem.
A germinação, o desenvolvimento, a flor e o
fruto pertencem ao Senhor.
Vicente, que se mostrava fortemente impressionado, observou:
O número de entidades perturbadas espanta. Vemo-las, em
diversos graus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta.
Aniceto sorriu e falou em tom grave:
Devemos esmagadora percentagem desses padecimentos à
falta de educação religiosa.
Não me refiro, porém, àquela que vem
do sacerdócio ou que parte da boca de uma criatura para os ouvidos
de outra. Refiro-me à educação religiosa, íntima e profunda,
que o homem nega sistematicamente a si mesmo.
CONTINUA AMANHÃ
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