CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 32
MELODIA SUPLIME
Num gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum
motivo musical de sua elevada esfera.
A esposa de Alfredo não se fez rogada. Com extrema bondade,
sentou-se ao órgão, falando, gentil:
– Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto.
E, ante nossa admiração comovida, começou a tocar maravilhosamente.
Logo às primeiras notas, alguma coisa me arrebatava
ao sublime.
Estávamos extasiados, silenciosos.
A melodia, tecida
em misteriosa beleza, inundava-nos o espírito em torrentes de
harmonia divina.
Penetrava-me o coração um campo de vibrações
suavíssimas, quando fui surpreendido por percepções absolutamente
inesperadas.
Com assombro indefinível, reparei que a
esposa de Alfredo não cantava, mas no seio caricioso da música
havia uma prece que atingia o sublime – oração que eu não escutava
com os ouvidos mas recebia em cheio na alma, através de
vibrações sutis, como se o melodioso som estivesse impregnado
do verbo silencioso e criador.
As notas de louvor alcançavam-me
o âmago do espírito, arrancando-me lágrimas de intraduzível
emotividade:
“O Senhor Supremo de Todos os Mundos
E de Todos os Seres,
Recebe, Senhor,
O nosso agradecimento
De filhos devedores do teu amor!
Dá-nos tua bênção.
Ampara-nos a esperança,
Ajuda-nos o ideal
Na estrada Imensa da vida...
Seja para o teu coração,
Cada dia,
Nosso primeiro pensamento de amor!
Seja para tua bondade
Nossa alegria de viver!...
Pai de amor infinito
Dá-nos tua mão generosa e santa.
Longo é o caminho.
Grande o nosso débito,
Mas inesgotável é a nossa esperança.
Pai Amado,
Somos as tuas criaturas,
Raios divinos
De tua Divina inteligência.
Ensina-nos a descobrir
Os tesouros imensos
Que guardaste
Nas profundezas de nossa vida,
Auxilia-nos a acender
A lâmpada sublime
Da Sublime Procura!
Senhor,
Caminhamos contigo
Na eternidade!...
Em Ti nos movemos para sempre.
Abençoa-nos a senda,
Indica-nos a Sagrada Realização.
E que a glória eterna
Seja em teu eterno trono!...
Resplandeça contigo a Infinita Luz,
Mane em teu coração misericordioso
A Soberana Fonte do Amor,
Cante em tua Criação Infinita
O sopro divino da eternidade.
Seja a tua bênção
Claridade aos nossos olhos,
Harmonia ao nosso ouvido,
Movimento às nossas mãos,
Impulso aos nossos pés.
No amor sublime da Terra e dos Céus!...
Na beleza de todas as vidas,
Na progressão de todas as coisas,
Na voz de todos os seres,
Glorificado sejas para sempre,
Senhor.”
Que melodia era aquela que se ouvia através de sons inarticulados?
Não pude conter as lágrimas abundantes.
Cecília comovera-
nos a sensibilidade. lembrando as harmonias terrenas e os
afetos humanos.
Ismália, no entanto, arrebatava-nos o Espírito,
elevando-nos ao Supremo Pai.
Nunca ouvira oração de louvor
como aquela! Além disso, a esposa de Alfredo glorificava o Senhor
de maneira diferente, inexprimível na linguagem humana.
Os prece tocara-me as recônditas fibras do coração e reconhecia que
nunca meditara na grandeza divina, como naquele instante em que
uma alma santificada falava de Deus, com a maravilha de suas
riquezas espirituais.
E não era só eu a chorar como criança. Aniceto enxugava os
olhos, de maneira discreta, e algumas senhoras levavam o lenço
ao rosto.
Compreendi que a oração terminara, porque a música mudou
de expressão.
O caráter heróico cedeu lugar a lirismo encantador.
Experimentando a profunda serenidade ambiente, vi que luzes
prodigiosas jorravam do Alto sobre a fronte de Ismália, envolvendo-a num arco irisado de efeito magnético e, com admiração e
enlevo, observei que belas flores azuis partiam do coração da
musicista, espalhando-se sobre nós. Desfaziam-se como se feitas
de caridosa bruma anilada, ao tocar-nos, de leve, enchendo-nos de
profunda alegria.
A maior parte caía sobre Aniceto, fazendo-nos
recordar as palavras amigas da dedicatória.
Impressionavam-me
profundamente aquelas corolas fluídicas, de sublime azul-celeste,
multiplicando-se, sem cessar, no ambiente, e penetrando-nos o
coração como pétalas constituídas apenas de colorido perfume.
Sentia-me tão alegre, experimentava tamanho bom ânimo que não
conseguiria traduzir as emoções do momento.
Mais alguns minutos e Ismália terminou a magistral melodia.
A esposa do administrador desceu até nós, coroada de intensa
luz. Alfredo avançou, beijando-a no rosto, ao mesmo tempo que
Aniceto lhe estendia a destra, agradecido.
– Há muito tempo não ouvia músicas tão sublimes como as
desta noite – exclamou nosso orientador, sorrindo. Cecília falounos
do sublime amor terrestre, Ismália arrebatou-nos ao divino
amor celestial.
Idéia feliz a de permanecermos no Posto!
Fomos
igualmente socorridos pela luz da amizade, que nos revigorou o
bom ânimo!
Aproximaram-se os Bacelares, eminentemente comovidos.
– Que maravilhosas flores nos deste, querida amiga! – disse a
mãezinha de Cecília, abraçando a esposa de Alfredo.
– Voltaremos ao trabalho, repletos de energia nova! – acrescentou
o senhor Bacelar, sorridente.
A extensa sala estava cheia de notas de reconhecimento e júbilo
sincero. A melodia de Ismália constituíra singular presente do
Céu. A alegria e o bom ânimo transpiravam em todos os rostos.
Observando que Aniceto se retirava para um canto do salão,
procurei-o, ansioso.
Desejava esclarecer o fenômeno da prece sem
palavras, das harmonias, das luzes e das flores. Antes, porém, das
interpelações do aprendiz, o orientador amigo sorriu, amável, e
explicou:
– Conheço a sua sede, André.
Não precisa perguntar. Impressionou-
se você com a grandeza espiritual da nobre companheira
do nosso amigo. Não precisarei alinhar esclarecimentos.
Recordase
de Ana, a infeliz criatura que dorme nos pavilhões, entre pesadelos
cruéis?
Lembra-se de Paulo, o caluniador?
Não os viu carregando
pesados fardos mentais?
Cada um de nós traz, nos caminhos
da vida, os arquivos de si mesmo.
Enquanto os maus exibem
o inferno que criaram para o íntimo, os bons revelam o paraíso
que edificaram no próprio coração.
Ismália já amontoou muitos
tesouros que as traças não roem.
Ela já pode dar da infinita harmonia
a que se devotou pela bondade e pelo divino amor. A luz
que vimos é a mesma que jorra do plano superior, de maneira
incessante, inundando os caminhos da vida, mas a melodia, a
prece e as flores constituem sublime criação dessa alma santificada.
Ela repartiu conosco, neste momento, uma parte dos seus
tesouros eternos! Peçamos ao Senhor, meu amigo, que não tenhamos
recebido em vão as sublimes dádivas!
CONTINUA AMANHÃ
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