segunda-feira, 21 de maio de 2012

OS MENSAGEIROS - LIVRO DE CHICO XAVIER


CONTINUAÇÃO

CAPÍTULO 21 
CECÍLIA AO ORGÃO 

Poucas vezes, no circulo carnal, tivera o prazer de assistir a reunião tão seleta. 
Todos os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as grandes árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam refletir o clarão lunar. 
Pares graciosos passeavam ao longo da varanda e das escadarias extensas. 
O castelo enchera-se de alegria, com a crescente multiplicação de convidados. 
O administrador mostrava-se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da colônia próxima. 
O júbilo transparecia em todos os rostos e eu, observando a beleza do espetáculo, meditava na ventura da vida social, no ambiente daqueles que começavam a compreender e praticar o “amai-vos uns aos outros”, distanciados da hipocrisia e das convenções aviltantes. Conversávamos, animadamente, quando Alfredo nos convidou para o Salão de Música. 
Houve geral contentamento. 
A senhora Bacelar, dando o braço à nobre Ismália, parecia encantada com a lembrança. 
Dirigimo-nos para o grande recinto, prodigiosamente iluminado por luzes de um azul doce e brilhante. 
Deliciosa música embalava-nos a alma. Observei, então, que um coro de pequenos músicos executava harmoniosa peça, ladeando um grande órgão, algo diferente dos que conhecemos na Terra. 
Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo, encantador. 
Cinqüenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservavamse, graciosamente, em posição de canto.. 
Executavam, com maravilhosa perfeição, uma linda barcarola que eu nunca ouvira no mundo. 
Comovidíssimo, ouvi o administrador explicar: – As crianças do Posto são as nossas flores vivas. Dão-nos perfume, encantamento, alegria, suavizando-nos todos os trabalhos. Abeiramo-nos do órgão, sentando-nos todos em confortáveis poltronas. 
Quando as crianças terminaram, sob aplausos calorosos, Ismália pediu a Cecília executasse alguma coisa. – Eu? – disse a jovem, corando – se a senhora vem das altas esferas, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar para os seus ouvidos? – Não diga isso, Cecília – tornou, sorridente, a generosa esposa do administrador –, a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha! lembre-me o lar terreno nos dias mais belos!... 
E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida, Ismália continuou: – Os serviços musicais do Posto levam-me a recordar a velha Fazenda, quando voltava do Internato... 
Meus pais estimavam as composições européias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano... E, fixando em Cecília os olhos úmidos e brilhantes, rematou: – Sua mamãe deve lembrar comigo a música predileta de meu velho e carinhoso pai... Notei que a senhora Bacelar disse alguma coisa à filha, em voz baixa, e vimos Cecília caminhar para o grande instrumento, sem hesitação. 
Com emoção indizível, ouvimo-la executar, magistralmente, a ‘Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, acompanhada pelas crianças exultantes. 
Fixei o rosto de Ismália, notando, pela luz do seu olhar, que seus pensamentos vagueavam longe, talvez em torno do antigo ninho doméstico. 
Vi-a enxugar as lágrimas discretas e abraçar Cecília carinhosamente, ao findar a execução. – Agora, Cecília, cante alguma canção da própria alma! – falou a nobre senhora com ternuras de mãe – mostre-nos seu coração... 
Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emocionados. Liase-lhes nos gestos o carinho com que acompanhavam os menores movimentos da filha. 
A jovem sorriu, voltou ao teclado, mas permanecia, agora, fundamente transfigurada. Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, que vinha de mais alto. 
Começou a cantar, de maneira misteriosa e comovedora. 
A música parecia sair-lhe das profundezas do coração, mergulhando-nos em sublime emotividade. 
Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção, mas seria impossível repeti-las integralmente, no círculo dos encarnados na Terra. 
A sombra da meia-noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. 
Mas de algo me lembro, para registrar aqui, com a fidelidade de que é suscetível minha memória imperfeita. 
Como se fora rodeada de claridades diversas daquela em que nos banhávamos, Cecília cantou com voz veludosa e cariciante: “Guardei para os teus olhos As estrelas brilhantes do céu calmo... Guardei para tua alma Todos os lírios puros dos caminhos!... Amado meu, amado meu, Como é longa a viagem entre escolhos Neste oceano imenso da saudade, Ao sublime luar da eternidade!... Em vão, a fada Esperança Acende a luz dentro de mim.. 
Os  Porque te foste ao mundo, assim? Volta, amado! Ainda mesmo Que as tuas mãos estejam frias E que teus pés sangrem de dor. 
Trago comigo o bálsamo, a ternura, Volta a mim, Vem respirar, de novo, no jardim Da Imortal união!... Curarei tuas chagas de amargura, Dar-te-ei o roteiro para a estrada, Amarei os que amas, Para que me abençoes com o teu sorriso. 
Volta, amado! Esquece a dor e a sombra do passado, Volta, de novo, ao nosso paraíso!...” Quando desferiu as últimas notas, vi-lhe o semblante lavado em lágrimas, como se fora banhado em pérolas de luz. 
Observei que a senhora Bacelar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou: – Cecília nunca o esquece. 
A esposa do administrador, mostrando-se extremamente sensibilizada, indagou: – Não têm vocês novas notícias de Hermínio? – O pobrezinho tem vivido de queda em queda – esclareceu a nobre interlocutora – e Cecília sabe que não poderá contar com ele, por muito tempo ainda, guardando, por esse motivo, muita  Os mágoa íntima. 
Entretanto, nossa filha não desanima e trabalha, incessantemente, cheia de esperança. 
Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar, enxugando os olhos. 
A esposa de Alfredo abraçou-a e falou: – Minhas felicitações! não sabia que você progredira tanto na arte divina! 
E que bela canção!... Cecília fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa amiga e retrucou: – Perdoe-me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muito ligado à Terra!... Ismália, porém, de olhos úmidos e compreendendo-lhe o sofrimento intimo, conchegou-a ao peito  
e murmurou: – Devotar-se não é crime, minha boa Cecília. O amor é luz de Deus, ainda mesmo quando resplandeça no fundo do abismo.

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