CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 21
CECÍLIA AO ORGÃO
Poucas vezes, no circulo carnal, tivera o prazer de assistir a
reunião tão seleta.
Todos os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as
grandes árvores, docemente agitadas pelo vento brando, pareciam
refletir o clarão lunar.
Pares graciosos passeavam ao longo da
varanda e das escadarias extensas.
O castelo enchera-se de alegria,
com a crescente multiplicação de convidados.
O administrador
mostrava-se orgulhoso de confraternizar com os colaboradores
diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos da colônia
próxima.
O júbilo transparecia em todos os rostos e eu, observando
a beleza do espetáculo, meditava na ventura da vida social, no
ambiente daqueles que começavam a compreender e praticar o
“amai-vos uns aos outros”, distanciados da hipocrisia e das convenções
aviltantes.
Conversávamos, animadamente, quando Alfredo nos convidou
para o Salão de Música.
Houve geral contentamento.
A senhora Bacelar, dando o braço
à nobre Ismália, parecia encantada com a lembrança.
Dirigimo-nos para o grande recinto, prodigiosamente iluminado
por luzes de um azul doce e brilhante.
Deliciosa música
embalava-nos a alma. Observei, então, que um coro de pequenos
músicos executava harmoniosa peça, ladeando um grande órgão,
algo diferente dos que conhecemos na Terra.
Oitenta crianças,
meninos e meninas, surgiam, ali, num quadro vivo, encantador.
Cinqüenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservavamse,
graciosamente, em posição de canto..
Executavam, com maravilhosa
perfeição, uma linda barcarola que eu nunca ouvira no
mundo.
Comovidíssimo, ouvi o administrador explicar:
– As crianças do Posto são as nossas flores vivas. Dão-nos
perfume, encantamento, alegria, suavizando-nos todos os trabalhos.
Abeiramo-nos do órgão, sentando-nos todos em confortáveis
poltronas.
Quando as crianças terminaram, sob aplausos calorosos, Ismália
pediu a Cecília executasse alguma coisa.
– Eu? – disse a jovem, corando – se a senhora vem das altas
esferas, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar
para os seus ouvidos?
– Não diga isso, Cecília – tornou, sorridente, a generosa esposa
do administrador –, a música elevada é sublime em toda parte.
Vá, minha filha! lembre-me o lar terreno nos dias mais belos!...
E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida,
Ismália continuou:
– Os serviços musicais do Posto levam-me a recordar a velha
Fazenda, quando voltava do Internato...
Meus pais estimavam as
composições européias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano...
E, fixando em Cecília os olhos úmidos e brilhantes, rematou:
– Sua mamãe deve lembrar comigo a música predileta de meu
velho e carinhoso pai...
Notei que a senhora Bacelar disse alguma coisa à filha, em
voz baixa, e vimos Cecília caminhar para o grande instrumento,
sem hesitação.
Com emoção indizível, ouvimo-la executar, magistralmente,
a ‘Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, acompanhada
pelas crianças exultantes.
Fixei o rosto de Ismália, notando, pela luz do seu olhar, que
seus pensamentos vagueavam longe, talvez em torno do antigo
ninho doméstico.
Vi-a enxugar as lágrimas discretas e abraçar
Cecília carinhosamente, ao findar a execução.
– Agora, Cecília, cante alguma canção da própria alma! – falou
a nobre senhora com ternuras de mãe – mostre-nos seu coração...
Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emocionados. Liase-lhes nos gestos o carinho com que acompanhavam os menores
movimentos da filha.
A jovem sorriu, voltou ao teclado, mas permanecia, agora,
fundamente transfigurada. Seu belo semblante parecia refletir
alguma luz diferente, que vinha de mais alto.
Começou a cantar,
de maneira misteriosa e comovedora.
A música parecia sair-lhe
das profundezas do coração, mergulhando-nos em sublime emotividade.
Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção, mas
seria impossível repeti-las integralmente, no círculo dos encarnados
na Terra.
A sombra da meia-noite não poderia traduzir o
revérbero da aurora.
Mas de algo me lembro, para registrar aqui,
com a fidelidade de que é suscetível minha memória imperfeita.
Como se fora rodeada de claridades diversas daquela em que
nos banhávamos, Cecília cantou com voz veludosa e cariciante:
“Guardei para os teus olhos
As estrelas brilhantes do céu calmo...
Guardei para tua alma
Todos os lírios puros dos caminhos!...
Amado meu, amado meu,
Como é longa a viagem entre escolhos
Neste oceano imenso da saudade,
Ao sublime luar da eternidade!...
Em vão, a fada Esperança
Acende a luz dentro de mim..
Os
Porque te foste ao mundo, assim?
Volta, amado!
Ainda mesmo
Que as tuas mãos estejam frias
E que teus pés sangrem de dor.
Trago comigo o bálsamo, a ternura,
Volta a mim,
Vem respirar, de novo, no jardim
Da Imortal união!...
Curarei tuas chagas de amargura,
Dar-te-ei o roteiro para a estrada,
Amarei os que amas,
Para que me abençoes com o teu sorriso.
Volta, amado!
Esquece a dor e a sombra do passado,
Volta, de novo, ao nosso paraíso!...”
Quando desferiu as últimas notas, vi-lhe o semblante lavado
em lágrimas, como se fora banhado em pérolas de luz.
Observei
que a senhora Bacelar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão
de Ismália, e falou:
– Cecília nunca o esquece.
A esposa do administrador, mostrando-se extremamente sensibilizada,
indagou:
– Não têm vocês novas notícias de Hermínio?
– O pobrezinho tem vivido de queda em queda – esclareceu a
nobre interlocutora – e Cecília sabe que não poderá contar com
ele, por muito tempo ainda, guardando, por esse motivo, muita Os mágoa íntima.
Entretanto, nossa filha não desanima e trabalha,
incessantemente, cheia de esperança.
Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar,
enxugando os olhos.
A esposa de Alfredo abraçou-a e falou:
– Minhas felicitações! não sabia que você progredira tanto na
arte divina!
E que bela canção!...
Cecília fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa
amiga e retrucou:
– Perdoe-me, querida Ismália, meu coração permanece ainda
muito ligado à Terra!...
Ismália, porém, de olhos úmidos e compreendendo-lhe o sofrimento
intimo, conchegou-a ao peito
e murmurou:
– Devotar-se não é crime, minha boa Cecília. O amor é luz de
Deus, ainda mesmo quando resplandeça no fundo do abismo.
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