CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 23
PESADELOS
Enquanto Alfredo continuava dirigindo os serviços, nosso
instrutor, com a permissão dele, conduziu-nos aos leitos distantes,
onde se asilavam os enfermos desatendidos quanto ao auxílio
magnético.
– Precisamos acentuar experiências e aproveitar oportunidades
– afirmou Aniceto, sorridente.
Acompanhamo-lo, curiosos, identificando as expressões isoladas,
dolorosas ou terríveis, daquelas máscaras mortuárias.
Quando nos encontrávamos a regular distância da zona central,
o instrutor esclareceu, em tom grave:
– Desejaria conhecer a extensão dos benefícios colhidos por
vocês no Gabinete de Auxílio Magnético às Percepções.
Para
ajudar eficientemente aos nossos amigos encarnados, é necessário
saibamos ver com clareza e precisão.
Indicando os doentes imóveis, acrescentou:
– Todos os que dormem nestes pavilhões permanecem dentro
do mau sono.
– Mas teremos, porventura, nas zonas espirituais, os que estejam
em bom sono? – interrogou Vicente, de modo brusco.
– Sem dúvida – respondeu Aniceto, solícito –, temos na esfera
de nossas atividades os que repousam períodos curtos, quais
trabalhadores retos que esperam o repouso noturno, com a tranqüilidade
dos que sabem trabalhar e descansar, de consciência
aliviada.
Fez uma pausa, como quem estudava o melhor meio de sintetizar,
por não perder tempo, e acentuou:
– Mas esses não precisam estacionar, como filhos da sombra,
nas construções de emergência de um Posto de Socorro.
Em seguida, retomou o fio da lição e continuou:
– Quem dorme em desequilíbrio, entrega-se a pesadelos.
Todos
estes irmãos desventurados que nos cercam, aparentemente
mortos, são presas de horríveis visões íntimas.
Vejamos o aproveitamento
de vocês.
Procedamos a observações rápidas. Antigamente,
o inquérito anatômico, o exame das vísceras, a perquirição
científica nas células, também aparentemente mortas; agora, a
auscultação profunda da alma, a sondagem dos sentimentos, a
visão do plano mental.
E, com expressão decidida, concluiu, resoluto:
– Mãos à obra!
Designando-me um corpo envelhecido de mulher, recomendou:
– Você, André, examine detidamente essa irmã.
Abstenha-se
de todas as considerações do plano exterior. Observe-a com todas
as possibilidades e percepções ao seu alcance.
Sinceramente interessado em atender, não reparei nas ordens
que o nosso instrutor transmitia a Vicente.
Procurei esquecer os quadros externos, focalizando aquela
máscara feminina com todos os meus recursos mentais.
A medida
que me despreocupava dos interesses diferentes, observava a
sombra cinzento-escura que se lhe ia condensando em torno da
fronte.
A visão parecia auxiliar-me o poder de concentração.
Reconhecendo que o fenômeno se acentuava, não mais lembrei
qualquer objeto ou situação exterior.
Estupefato, comecei a divisar
formas movimentadas no âmbito da pequena tela sombria.
Surgiu uma casa modesta de cidade humilde.
Tive a impressão de
transpor-lhe a porta.
Lá dentro, um quadro horrível e angustioso.
Uma senhora de idade madura, demonstrando crueldade impassível
no rosto, lutava com um homem embriagado.
– “Ana! Ana! pelo amor de Deus! não me mates!” – dizia ele,
súplice, incapaz de defender-se.
– “Nunca! Nunca te perdoarei!! – exclamava a mulher, acrescentando
em tom lúgubre – “Morrerás esta noite”. – vi o infeliz
cair, exausto.
– “Envenenaste-me com bebida mortal” – exclamava ele, lacrimoso
– “perdoa-me se te causei algum mal! Sou pai! Ana!
preciso viver para meus filhos! Não me mates, por piedade!”
Ela ouviu com frieza e respondeu duramente: – “Morrerás
mesmo assim.
Tenho a infelicidade de amar-te, a ti que pertences
a outra mulher! Não quiseste seguir-me e preciso vingar-me!”
Rebolcando-se no assoalho, tomava o infeliz: – “Deus sabe
que estou arrependido do meu criminoso passado! Quero viver
para o bem, Ana! Perdoa-me por amor do Eterno Pai! Quem sabe
poderei auxiliar-te como irmão? Ajuda-me para que te possa
ajudar! Não me mates! Não me mates!”
A mulher, porém, como se tivesse a maldade agravada, ao
ouvir a expressão da virtude, tomou de um pesado martelo e
exclamou: –
“Deus não existe! Deus não existe! Morrerás, infame!”
E, de súbito, crivou-lhe o crânio de marteladas surdas.
O homem
expirou sem um grito.
Logo após, vi a criminosa conduzindo
o cadáver em carrinho de mão, através de um trilho ermo.
Acompanhava-lhe os movimentos com interesse.
A noite estava muito
escura, mas observei a parada junto à via férrea.
Sondou os arredores,
certificou-se do insulamento em que se encontrava e depôs
a estranha carga sobre os trilhos.
Vi-a dispondo o cadáver para
que a cabeça fosse decepada à passagem do comboio, retirando-se
apressadamente, reconduzindo o pequeno carro vazio.
Não esperei
a máquina de ferro.
Segui a mulher que me pareceu inquieta e
pensativa.
Antes, porém, que depusesse o carrinho no extenso
quintal, vi que arregalava os olhos como louca, cercada de seres
que me pareceram bandidos de negras vestes.
Era ela, agora,
quem acusava estranha embriaguez de pavor.
Vencera um pobre
homem invigilante, mas, a meu ver, seria vencida por seres mais
perversos, talvez, que ela própria: – “Acudam-me! acudam-me!”
– gritava, espavorida.
E continuava a cena, em que a desventurada
golfava súplicas em vão.
Senti-me como espectador que precisasse movimentar qualquer
socorro.
E, graças à Bondade Divina, não experimentei pela
mulher infeliz senão a mais viva compaixão.
Ao primeiro impulso
de revolta pelo crime consumado, recordei as lições já recebidas
em “Nosso Lar” e pensei na possibilidade de ser a criminosa
alguma pessoa querida ao meu coração.
Se Ana estivesse no
mundo, ao meu lado, na família do sangue, não desejaria auxiliála?
Porque haveria de acusá-la, se não lhe conhecia o passado
total?
Ter-lhe-iam dado a educação na infância, a bênção do lar, a
segurança de um afeto sem manchas?
Quem sabe viera de longe,
como pedra incompreendida, rolando nos abismos do sofrimento?
Que laços a uniriam à vítima, igualmente digna de piedade fraternal?
Como teria começado o drama doloroso?
Não sabia. Enxergava
somente a pobre mulher rodeada de sombras agressivas,
implorando socorro.
Ignorava como ajudá-la, mas recordei que
Ana era minha irmã, filha do mesmo Pai, irmã que adoecera no
caminho comum, sem que eu pudesse, pelo menos por agora,
indagar a causa.
Procurava, comigo mesmo, algum meio de auxiliá-la, quando alguém me chamou de súbito.
Era Aniceto que exclamava, bondoso:
– Venha, André! Vicente e você têm sabido aproveitar alguma
coisa.
Estou satisfeito. Seus pensamentos de fraternidade e paz
muito auxiliaram essa irmã infeliz.
Guarde a certeza disso e continue buscando a compreensão para socorrer e ajudar com êxito.
Conforme observaram de perto, sabem agora que cada um dos que
aqui dormem sono atormentado, vivem estranhos pesadelos, de
que não podem isentar-se de um instante para outro.
Não precisamos
comentar qualquer episodio dessas existências vividas em
oposição à Vontade Divina.
Bastará lembrar sempre que a divida,
em toda parte, anda com os devedores.
E com expressivo olhar, acrescentou:
– Voltemos ao centro.
Devemos cooperar na oração.
CONTINUA AMANHÃ
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