CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 22
OS HOMENS QUE DORMEM
Seguimos através de longas filas de arvoredo acolhedor, rumo
às vastas edificações que obedeciam a linhas arquitetônicas singulares.
Sem que eu pudesse explicar o fenômeno, as luzes diminuíam
progressivamente. Que teria acontecido? Vicente e eu nos entreolhamos,
assustados.
Alfredo, Aniceto e os demais, todavia, caminhavam
sem surpresa.
A serenidade deles tranqüilizava-me o
íntimo, embora o espanto insofreável.
Mais alguns passos, atingimos os pavilhões diferentes, que se
estendiam em área superior a três quilômetros, pelos meus cálculos.
Lá dentro, contudo, as sombras se fizeram mais densas.
Conseguia
distinguir, vagamente, os quadros interiores, observando
que se tratava, a meu ver, de espaçosas enfermarias com teto
sólido, mas semi-abertas ao longo das paredes altas, dando livre
passagem ao ar.
Dezenas de operários, devotados e operosos, seguiam-nos em
absoluto silêncio.
Alfredo era o único a falar, notando-se, contudo, que se fizera
extremamente discreto nas palavras.
Tudo isso me dava a impressão de haver penetrado um cemitério
escuro, onde os visitantes fossem obrigados a guardar todo o
respeito aos mortos.
Com estranheza, notei que um dos servidores entregara ao
chefe do Posto pequenina máquina, que Alfredo nos deu a conhecer
gentilmente, explicando:
– Este é o nosso aparelho de sinalização luminosa.
Estamos
no centro dos pavilhões a que se recolhem irmãos ainda adormecidos.
Temos aqui, presentemente, quase dois mil.
Os numerosos cooperadores dirigiam-se em ordem para a zona
de serviços que lhes competiam.
Depois de pequena pausa, falou o administrador com firmeza:
– Iniciemos o trabalho de assistência.
Ao primeiro sinal luminoso de Alfredo, acenderam-se numerosas
lâmpadas elétricas e, então, dominando, a custo, a primeira
impressão de horror, vi extensas filas de leitos ao rés do chão,
ocupados todos por pessoas mergulhadas em profundo sono.
Muitos tinham o semblante horrendo.
Eram muito poucos os que
traziam as pálpebras cerradas, parecendo tranqüilos.
Em quase
todos, estampavam-se-lhes nos olhos, aparentemente vitrificados,
o extremo pavor e o doloroso desespero da morte.
Cadavérica
palidez cobria-lhes a face.
Recordando a literatura antiga, pensei nos velhos túmulos egípcios.
Tínhamos, diante de nós, centenas de múmias perfeitas.
Raríssimos pareciam dormir um sono natural.
Aproximando-se de nós outros, Alfredo falou a Aniceto, em
particular:
– Infelizmente, não podemos atender a todos.
– Porquê? – indagou nosso orientador, comovido.
– Estamos aguardando pessoal adestrado. Tenho aqui a colaboração
de oitenta auxiliares para este gênero de serviço; entretanto,
não pode cada qual atender a mais de cinco doentes de uma
só vez.
A vista disso, dos nossos mil novecentos e oitenta abrigados,
separei os quatrocentos mais suscetíveis de próximo despertar,
a fim de submetê-los ao tratamento intensivo.
– E os demais?
– Recebem alimento e medicação mais densos uma vez por
dia.
Aniceto calou-se, pensativo.
Profundamente tocado pelo que via, inclinei-me instintivamente
para o abrigado mais próximo, tentando examinar-lhe o
estado fisiológico.
Identifiquei o calor orgânico, a pulsação regular
e os movimentos respiratórios, embora verificasse a extrema
rigidez dos membros, como que mergulhados em imobilidade
cataléptica.
Indescritível impressão apoderou-se de mim.
Levantei-me assustado,
dirigi-me a Aniceto com a máxima discrição, e interroguei:
Explicai-me, por Deus! que vemos aqui?
Estamos, acaso, na
moradia da morte, depois da morte?
O instrutor sorriu, complacente, e explicou em voz quase imperceptível:
– Sim, André, este sono é, verdadeiramente, avançada imagem
da morte.
Aqui permanecem, com a bênção do abrigo, alguns
milhões dos nossos irmãos que ainda dormem.
São as criaturas
que nunca se entregaram ao bem ativo e renovador, em torno de
si, e mormente os que acreditaram convictamente na morte, como
sendo o nada, o fim de tudo, o sono eterno.
A crença na vida
superior é atividade incessante da alma.
A ferrugem ataca a enxada
ociosa. O entorpecimento invade o Espírito vazio de ideal
criador.
Os que, nos círculos carnais, homens e mulheres, crêem
na vida eterna, ainda que não sejam fundamentalmente cristãos,
estão desenvolvendo faculdades de movimentação espiritual e
podem penetrar as esferas extraterrenas em estado animador, pelo
menos quanto à locomoção e juízo mais ou menos exato.
No
entanto, as criaturas que perseveram em negação deliberada e
absoluta, não obstante, por vezes, filiadas a cultos externos de
atividade religiosa, que nada vêem além da carne nem desejam
qualquer conhecimento espiritual, são verdadeiramente infelizes.
Muitos penetram nossas regiões de serviço, como embriões de
vida, na câmara da Natureza sempre divina.
Um amigo nosso
costuma designá-los por fetos da espiritualidade; entretanto, a
meu ver, seriam felizes se estivessem nessa condição inicial.
Temos a certeza, porém, de que muitos se negaram ao contacto da
fé, absolutamente por indiferença criminosa aos desígnios do
Eterno Pai.
Dormem, porque estão magnetizados pelas próprias
concepções negativistas; permanecem paralíticos, porque preferiram
a rigidez ao entendimento; mas dia virá em que deverão
levantar-se e pagar os débitos contraídos.
Eis porque os considero
sofredores.
Primeiramente, demoram no sono em que acreditaram,
mais tarde acordam; porém, a maioria não pode fugir à enfermidade
e à perturbação, como acontece aos irmãos dementados, que
vimos inda há pouco.
Grande o meu assombro. Como Vicente se aproximasse, também,
para ouvi-lo, falou Aniceto, esclarecendo a nós ambos:
– A fé sincera é ginástica do Espírito. Quem não a exercitar
de algum modo, na Terra, preferindo deliberadamente a negação
injustificável, encontrar-se-á mais tarde sem movimento. Semelhantes
criaturas necessitam de sono, de profundo repouso, até
que despertem para o exame das responsabilidades que a vida
traduz.
Observando que o nosso orientador se esquivava a comentários
longos, para que pudéssemos seguir, de mais perto, os trabalhos
de assistência, calei as muitas indagações que me escaldavam
a mente.
Com exceção de algumas senhoras que permaneciam junto de
Ismália, todo. os servidores se mantinham em posição de vigilância,
ao pé dos grupos mumificados.
A luz artificial iluminava os
leitos, que se perdiam de vista, mas observei que nenhum dos
albergados reagia à intensa claridade que se fizera.
Continuavam
rígidos, cadavéricos, prostrados.
Notei, então, que Alfredo começou a mover o aparelho de sinalização,
para emitir as ordens de serviço. Cada sinal determinava
operação diferente.
Vi os servidores do Posto distribuírem pequenas porções de
alimento líquido e medicação bucal, em profundo silêncio.
Em
seguida, forneceram reduzidas quantidades de água efluviada aos
infelizes, com exceção, porém, de muitos que pareciam preparados
a receber, tão somente, caldo e remédio.
Dois terços dos
quatrocentos abrigados em tratamento receberam passes magnéticos.
Alguns poucos receberam aplicações do sopro curador.
Todos os movimentos do trabalho eram transmitidos pela sinalização
luminosa, partida das mãos do administrador, que parecia
interessado na manutenção do máximo silêncio.
Impressionado
com o que via, perguntei ao orientador, em voz baixa, a razão
de alguns enfermos não terem sido beneficiados com a água e
com o socorro de forças novas, através do passe e do sopro vivificante.
Aniceto, todo bondade, inclinou-se aos meus ouvidos, com a
ternura de um pai ansioso por tranqüilizar o filhinho inquieto, e
falou:
– Cada um na vida, meu caro André, tem a necessidade que
lhe é peculiar. Aqui, compreendemos com amplitude esse imperativo
da Natureza.
CONTINUA AMANHÃ
Nenhum comentário:
Postar um comentário