CONTINUAÇÃO
CAPÍTULO 21
ESPÍRITOS DEMENTADOS
Inúmeros servidores acompanhavam-nos ao serviço. Movimentavam-
se carregadores sem conta.
Conduziam grandes botijas
d'água, caldeirões de sopa, vasos de substância medicamentosa,
em galeotas diversas.
Mais alguns passos e notei que centenas de entidades se reuniam
em vastos albergues, olhos vagueantes e rostos sombrios,
parecendo uma assembléia de loucos em manicômio de amplas
proporções.
Alfredo aconselhou umas tantas providências de serviço à
maioria dos técnicos do sopro curativo, os quais se desviaram de
nós, rumo às edificações situadas em zona diferente.
Gentilmente nos explicava que os benfeitores de “Campo da
Paz” localizavam, ali, grande número de Espíritos enfermos, mais
desequilibrados que propriamente perversos.
Os doentes que
tínhamos sob os olhos permaneciam em melhores condições.
Já se
locomoviam e muitos deles já conversavam, apesar do desequilíbrio
que lhes assinalava as palavras e pensamentos.
Esclarecia-nos sobre as múltiplas obrigações do trabalho de
rotina, quando algumas entidades se acercaram, respeitosas:
– Senhor Alfredo – disse um velho de barbas muito alvas –,
estou aguardando o resultado da minha petição. Em que ficamos,
quanto às minhas terras e os escravos? Paguei bom preço ao Carmo
Garcia. Sabe o senhor que venho sendo perseguido durante
muitos anos, e não posso perder mais tempo.
Quando volto para
casa? Creio esteja o senhor ciente da necessidade de eu voltar ao
seio dos meus. Esperam-me a mulher e os filhos.
Como excelente médico da alma, Alfredo prestou a maior atenção
e respondeu, como se estivesse tratando com pessoa de
bom senso:
– Sim, Malaquias, você reclama com razão, mas sua saúde
não permite o regresso apressado. Você sabe que sua esposa,
Dona Sinhá, pediu fosse você aqui tratado convenientemente.
Creio que ela deve estar muito tranqüila a seu respeito.
Suas
idéias, porém, meu amigo, não estão ainda bem coordenadas.
Temos alguma coisa mais a fazer. Porque preocupar-se tanto,
assim, com as terras e os escravos? Primeiramente a saúde, Malaquias;
não esqueça a saúde!
O velho sorriu, como o doente apoiado na firmeza e no otimismo
do médico.
– Reconheço que as suas observações são justas, mas meus filhos
não se movem sem mim, são preguiçosos e necessitam da
minha presença.
Mas, doutrinando sutilmente o pobre velhinho, o administrador
objetou:
– Entretanto, donde vieram os filhos para os seus braços paternos?
Não vieram das mãos de Deus?
– Sim, sim... – afirmava o ancião, trêmulo e satisfeito.
– Pois é isso, Malaquias, chegam instantes na vida, em que
precisamos devolver a Deus o que a Ele pertence.
Além do mais,
seus filhos são também responsáveis e, se forem ociosos, responderão
pelos males que criarem em torno de si mesmos.
Por agora,
é indispensável que você se refaça, aclare as idéias e sossegue o
coração.
O velho sorriu, confortado, mas, antes que pudesse falar de
novo, um cavalheiro, denotando nobre aprumo, adiantou-se, exclamando:
– E a solução do meu processo, senhor Alfredo?
Sinto-me
prejudicado pelos parentes de má fé. Minha parte na herança dos
avós é cobiçada pelos primos.
Segundo já lhe fiz ver, meu quinhão
é superior aos demais. Soube, todavia, que o Visconde de
Cairu interpôs toda a sua influência contra mim.
Ninguém ignora
tratar-se de um grande velhaco.
Que não poderá ele fazer com as
artimanhas políticas?
Está mal informado a meu respeito.
O senhor
enviou meu pedido ao Imperador?
– Já expedi a mensagem – esclareceu Alfredo com carinho
fraternal –, o Imperador certamente levará em conta a solicitação.
– Entretanto, a demora é muito grande!... – falou o cavalheiro,
impaciente, como se estivesse diante de um subordinado vulgar.
– Mas, meu caro Aristarco – respondeu o administrador, muito
calmo –, acredito que você está sendo experimentado para
conhecer a grandeza da herança divina. Que valem os patrimônios
terrestres, ante os patrimônios imperecíveis?
Não pense no que
tem perdido; medite nos bens sublimes que poderá alcançar,
diante da Vida Eterna.
Esqueça os primos ambiciosos e o Visconde
que não o compreendeu.
Terão eles de deixar quanto possuem,
no campo transitório, a fim de prestarem contas à Divindade.
Nunca pensou nisto?
Aristarco pareceu perder, por momentos, a inquietação, sorriu
francamente e respondeu:
– É verdade! Os tratantes morrerão...
Uma senhora, mostrando-se aflita, pôs-se à nossa frente e interpelou,
altiva:
– Senhor Alfredo, peço-lhe não me retenha aqui.
Meu marido
é nosso próprio adversário.
Prometeu perseguir as filhas, tão logo
me ausentasse de casa.
Aqui permanecendo, estou certa de que ele
nos dissipará os bens, desmoralizar-nos-á o nome. Por favor,
autorize o meu regresso.
O coração me diz que as filhinhas estão
desesperadas. Convenço-me, cada vez mais, de que minha moléstia
teve origem neste estado de coisas...
– Já sei, minha irmã – respondeu o nosso amigo com a mesma
solicitude –; no entanto, que adiantaria regressar, tão fortemente
atormentada?
Não será melhor curar-se, tranqüilizar o espírito
para ajudar as filhinhas com eficiência?
– Mas, nem sequer sei onde estou – reclamou a pobre senhora,
torcendo as mãos –, creio me tenham trazido ao fim do mundo,
para tratamento de uma simples perda de sentidos!
– Todavia, ninguém a maltrata – disse o interlocutor, bondosamente
– e seu caso não é tão simples como parece.
Tenha calma.
Os laços consangüíneos são edificantes, mas, acima deles,
vibra a família universal.
Há criaturas suportando fardos muito
mais pesados que o seu.
Aprenda, quanto esteja em suas possibilidades,
a desfazer-se de aquisições passageiras, para ganhar os
eternos bens.
A infeliz não sorriu como os outros.
Fechando-se em sombria
catadura, afastou-se pesadamente, olhos fulgurantes de cólera,
como se a mente estivesse cravada muito longe, incapaz de qualquer
compreensão.
Adiantaram-se outros enfermos, mas o administrador falou
em voz alta:
– Não posso atender a todos no momento.
Depois de amanhã,
serão recebidos para explicações.
E, voltando-se para nós, esclareceu a sorrir:
– No circulo carnal, seriam todos absolutamente normais; no
entanto, aqui, são verdadeiros loucos.
São desencarnados que, por
muito tempo, se agarraram aos problemas inferiores
. Reclamam
providências, sem falar no ensejo de iluminação que menosprezaram,
acusam os outros, sem relacionarem os próprios erros.
Procurei ouvi-los para lhes dar uma idéia do nosso trabalho, no setor
dos que se desequilibram mentalmente por excesso de centralização
em propósitos inferiores.
Não é crime interessar-se alguém
pelas atividades rurais, pela recepção de uma herança, pelo bemestar
da família; mas, no fundo, o velhinho que reclama terras e
escravos nunca pensou senão em tirania no campo; o cavalheiro,
que aguarda a herança, deseja lesar os primos; e a senhora, que se
revelou tão interessada pelo ambiente doméstico, desencarnou
quando pretendia envenenar o marido, às ocultas.
Conheço-lhes os processos, um a um. Acordaram de longo
sono, na inconsciência, e julgam-se ainda encarnados, supondo
igualmente que podem dissimular as pretensões criminosas.
Eu estava assombrado.
Expressando minha profunda admiração,
perguntei:
– Esses doentes demoram-se aqui? Como alcançaram o Posto?
Gentil, como sempre, Alfredo respondeu:
– Foram recolhidos em pior estado. Já estiveram em pesado
sono durante muito tempo e vão readquirindo a memória, gradativamente,
até que possam ser encaminhados aos Institutos Magnéticos
de “Campo da Paz”, a fim de receberem maiores auxílios e
necessários esclarecimentos.
CONTINUA AMANHÃ
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