CONTINUAÇÃO
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OUVINDO IMPRESSÕES
Deixando Acelino em conversação mais íntima com Otávio,
fui levado por Vicente a outro ângulo da sala.
Muitos grupos se mantinham em palestra interessante e educativa,
observando eu que quase todos comentavam as derrotas
sofridas na Terra.
– Fiz quanto pude – exclamava uma velhinha simpática para
duas companheiras que a escutavam atentamente –; no entanto, os
laços de família são muito fortes. Algo se fazia ouvir sempre, com
voz muito alta, em meu espírito, compelindo-me ao desempenho
da tarefa; mas... e o marido? Amâncio nunca se conformou. Se os
enfermos me procuravam no receituário comum, agravava-se-lhe
a neurastenia; se os companheiros de doutrina me convidavam aos
estudos evangélicos, revoltava-se, ciumento. Que pensam vocês?
Chegava a mobilizar minhas filhas contra mim. Como seria possível,
em tais circunstâncias, atender a obrigações mediúnicas?
– Todavia – ponderou uma das senhoras que parecia mais segura
de si –, sempre temos recursos e pretextos para fugir às
culpas. Encaremos nossos problemas com realismo. Há de convir
que, com o socorro da boa vontade, sempre lhe ficariam alguns
minutos na semana e algumas pequenas oportunidades para fazer
o bem.
Talvez pudesse conquistar o entendimento do esposo e a
colaboração afetuosa das filhas, se trabalhasse em silêncio, mostrando
sincera disposição para o sacrifício.
Nossos atos, Mariana,
são muito mais contagiosos que as nossas palavras.
– Sim – respondeu a interlocutora, emitindo voz diferente –,
concordo com a observação. Em verdade, nunca pude sofrer a
incompreensão dos meus, sem reclamar.
– Para trabalharmos com eficiência – tornou a companheira,
sensata –, é preciso saber calar, antes de tudo. Teríamos atendido
perfeitamente aos nossos deveres, se tivéssemos usado todas as
receitas de obediência e otimismo que fornecemos aos outros.
Aconselhar é sempre útil, mas aconselhar excessivamente pode
traduzir esquecimentos de nossas obrigações. Assim digo, porque
meu caso, a bem dizer, é muito semelhante ao seu.
Fomos ao
círculo carnal para construir com Jesus, mas caímos na tolice de
acreditar que andávamos pela Terra para discutir nossos caprichos.
Não executei minha tarefa mediúnica, em virtude da irritação
que me dominou, dada a indiferença dos meus familiares
pelos serviços espirituais. Nossos instrutores, aqui, muito me
recomendaram, antes, que para bem ensinar é necessário exemplificar
melhor.
Entretanto, por minha desventura, tudo esqueci no
trabalho temporário da Terra.
Se meu marido fazia ponderações,
eu criava refutações.
Não suportava qualquer parecer contrário ao
meu ponto de vista, em matéria de crença, incapaz de perceber a
vaidade e a tolice dos meus gestos.
Das irreflexões nasceu minha
perda última, na qual agravei, de muito, as responsabilidades.
Quase mensalmente, Joaquim e eu nos empenhávamos em discussões
e não trocávamos apenas os insultos contundentes, mas
também os fluidos venenosos, segregados por nossa mente rebelde
e enfermiça.
Entre os conflitos e suas conseqüências, passei o
tempo inutilizada para qualquer trabalho de elevação espiritual.
Nesse instante, chamou-me Vicente para apresentar um amigo.
Ao nosso lado, outro grupo de senhoras conversava animadamente:
– Afinal, Ernestina – indagava uma delas à mais jovem –,
qual foi a causa do seu desastre?
– Apenas o medo, minha amiga – explicou-se a interpelada –,
tive medo de tudo e de todos. Foi o meu grande mal.
Os Mas, como tudo isto impressiona! Você foi muitíssimo preparada.
Recordo-me ainda das nossas lições em conjunto. As
instrutoras do Esclarecimento confiavam extraordinariamente no
seu concurso.
Seu aproveitamento era um padrão para nós outras.
– Sim, minha querida Benita, suas reminiscências fazem-me
sentir, com mais clareza, a extensão da minha bancarrota pessoal.
Entretanto, não devo fugir à realidade.
Fui a culpada de tudo.
Preparei-me o bastante para resgatar antigos débitos e efetuar
edificações novas; contudo, não vigiei como se impunha.
O chamamento
ao serviço ressoou no tempo próprio, orientando-me o
raciocínio a melhores esclarecimentos; nossos instrutores me
proporcionavam os mais santos incentivos, mas desconfiei dos
homens, dos desencarnados e até de mim mesma. Nos estudiosos
do plano físico, enxergava pessoas de má fé; nos irmãos invisíveis,
presumia encontrar apenas galhofeiros fantasiados de orientadores
e, em mim mesma, receava as tendências nocivas.
Muitos
amigos tinham-me em conta de virtuosa, pelo rigorismo das minhas
exigências; todavia, no fundo, eu não passava de enferma
voluntária, carregada de aflições inúteis.
– Foi uma grande infantilidade da sua parte – retrucou a outra
–, você olvidou que, na esfera carnal, o maior interesse da alma é
a realização de algo útil para o bem de todos, com vistas ao Infinito
e à Eternidade.
Nesse mister, é indispensável contar com o
assédio de todos os elementos contrários. Ironias da ignorância,
ataques da insensatez, sugestões inferiores da nossa própria animalidade
surgirão, com certeza, no caminho de todo trabalhador
fiel.
São circunstâncias lógicas e fatais do serviço, porque não
vamos ao mundo físico para descanso injustificável, mas para
lutar pela nossa melhoria, a despeito de todo impedimento fortuito.
– Compreendo, agora – disse a outra –; todavia, o receio das
mistificações prejudicou minha bela oportunidade.
– É, minha amiga – tornou a interlocutora –, é tarde para lamentar.
Tanto tememos as mistificações, que acabamos por mistificar
os serviços do Cristo.
Eu ouvia a palestra, com interesse crescente, mas o companheiro
levou-me adiante para novas apresentações.
Atendia a esses agradáveis deveres da sociedade de “Nosso
Lar”, mas, para não perder ensejo de instruir-me, continuava
atento às conversações em torno.
Alguns cavalheiros mantinham
discreta permuta de pareceres.
– Reconheço que fali – dizia um deles em tom grave – e muito
já expiei nas regiões inferiores, mas aguardo novos recursos da
Providência.
– Faltou-lhe, porém, bastante orientação para o caminho? –
perguntava um companheiro.
– Explico-me – esclareceu o primeiro –, faltou-me o amparo
da esposa. Enquanto a tive a meu lado, verificava-se profundo
equilíbrio em minhas forças psíquicas.
A companhia dela, sem
que eu pudesse explicar, compensava-me todo gasto de energia
mediúnica.
Minha noção de balanço estava nas mãos de minha
querida Adélia. Esqueci-me, porém, de que o bom servo deve
estar preparado para o serviço do Senhor, em qualquer circunstância.
Não aprendi a ciência da conformação e nem me resignei a
percorrer sozinho as estradas humanas.
Quando me senti sem a
dedicada companheira, arrebatada pela morte, amedrontei-me, por
sentir-me em desequilíbrio e, erradamente, procurei substitui-la, e
fui acidentado. Extremamente ligada a entidades malfazejas,
minha segunda mulher, com os seus desvarios, arrastou-me a
perversões sexuais de que nunca me supusera capaz.
Voltei, insensivelmente,
ao convívio de criaturas perversas e, tendo começado
bem, acabei mal.
Meus desastres foram enormes; entretanto,
embora reconheça minha deficiência, entendo, ainda hoje, que o
triunfo, mesmo no futuro, ser-me-á muito difícil sem a companheira
bem-amada.
Tornara-se a palestra sumamente interessante. Desejava acompanhar-lhe o curso, mas Vicente chamou-me a atenção para
outro assunto e era necessário acompanhá-lo.
CONTINUA AMANHÃ
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