CONTINUAÇÃO
A queda de Otávio
A ausência de Aniceto deu ensejo a palestras interessantes.
Formaram-se grupos de conversação amiga.
Impressionado com as senhoras que haviam solicitado providências
para Otávio, pedi a Vicente me apresentasse a elas, não
que me movesse curiosidade menos digna, mas desejo de alcançar
novos valores educativos sobre a tarefa mediúnica, que a palavra
de Telésforo me fizera sentir em tons diferentes.
O amigo atendeu de boamente.
Em breves momentos, não me achava tão só à frente das irmãs
Isaura e Isabel, mas do próprio Otávio, um pálido senhor que
aparentava quarenta anos.
– Também sou principiante aqui – expliquei – e minha condição
é a do médico falido nos deveres que o Senhor lhe confiou.
Otávio sorriu e respondeu:
– Possivelmente, o meu amigo terá a seu favor o fato de haver
ignorado as verdades eternas, no mundo. O mesmo não ocorre
comigo, ai de mim! Não desconhecia o roteiro certo, que o Pai me
designava para as lutas na Terra. Não possuía títulos oficializados
de competência; entretanto, dispunha de considerável cultura
evangélica, coisa que, para a vida eterna, é de maior importância
que a cultura intelectual, simplesmente considerada. Tive amigos
generosos do plano superior, que se faziam visíveis aos meus
olhos, recebi mensagens repletas de amor e sabedoria e, no entanto,
cai mesmo assim, obedecendo à imprevidência e à vaidade.
As observações de Otávio impressionavam-me vivamente.
Quando no mundo, eu não tivera contacto especial com as escolas
Francisco Cândido Xavier - Os Mensageiros - pelo Espírito André Luiz 39
espiritistas e experimentava certa dificuldade para compreender
tudo quanto ele desejava dizer.
– Ignorava a extensão das responsabilidades mediúnicas –
respondi.
– As tarefas espirituais – tornou o interlocutor, algo acabrunhado
– ocupam-se de interesses eternos e daí a enormidade de
minha falta. Os mordomos de bens da alma estão investidos de
responsabilidades pesadíssimas. Os estudiosos, os crentes, os
simpatizantes, no campo da fé, podem alegar ignorância e inibição;
todavia, os sacerdotes não têm desculpa. É o mesmo que se
verifica na tarefa mediúnica. Os aprendizes ou beneficiários, nos
templos da Revelação nova, podem referir-se a determinados
impedimentos; mas o missionário é obrigado a caminhar com um
patrimônio de certezas tais, que coisa alguma o exonera das culpas
adquiridas.
– Mas, meu amigo – perguntei, assaz impressionado –, que
teria motivado seu martírio moral? Noto-o tão consciente de si
mesmo, tão superiormente informado sobre as leis da vida, que
me custa acreditar se encontre necessitado de novas experiências
nesse capítulo...
Ambas as senhoras presentes mostraram estranho brilho no
olhar, enquanto Otávio respondia:
– Relatarei minha queda. Verá como perdi maravilhosa oportunidade
de elevação.
E, após mais longa pausa, continuou, gravemente:
– “Depois de contrair dividas enormes na esfera carnal, noutro
tempo, vim bater às portas de “Nosso Lar”, sendo atendido por
irmãos dedicados, que se revelaram incansáveis para comigo.
Preparei-me, então, durante trinta anos consecutivos, para voltar à
Terra em tarefa mediúnica, desejoso de saldar minhas contas e
elevar-me alguma coisa. Não faltaram lições verdadeiramente
Francisco Cândido Xavier - Os Mensageiros - pelo Espírito André Luiz 40
sublimes, nem estímulos santos ao meu coração imperfeito. O
Ministério da Comunicação favoreceu-me com todas as facilidades
e, sobretudo, seis entidades amigas movimentaram os maiores
recursos em benefício do meu êxito. Técnicos do Auxílio acompanharam-
me à Terra, nas vésperas do meu renascimento, entregando-
me um corpo físico rigorosamente sadio. Segundo a magnanimidade
dos meus benfeitores daqui, ser-me-ia concedido
certo trabalho de relevo, na esfera de consolação às criaturas.
Permaneceria junto das falanges de colaboradores encarregados
do Brasil, animando-lhes os esforços o atendendo a irmãos outros,
ignorantes, perturbados ou infelizes. O matrimônio não deveria
entrar na linha de minhas cogitações, não que o casamento possa
colidir com o exercício da mediunidade, mas porque meu caso
particular assim o exigia.
“Nada obstante, solteiro, deveria receber, aos vinte anos, os
seis amigos que muito trabalharam por mim, em “Nosso Lar”, os
quais chegariam ao meu círculo como órfãos. Meu débito para
com essas entidades tornou-se muito grande e a providência não
só constituiria agradável resgate para mim, como também garantia
de triunfo pelo serviço de assistência a elas, o que me preservaria
o coração de leviandades e vacilações, porquanto o ganha-pão
laborioso me compeliria a não aceder a sugestões inferiores nos
domínios do sexo e das ambições incontidas. Ficou também assentado
que minhas atividades novas começariam com muitos
sacrifícios, para que o possível carinho de outrem não amolecesse
a minha fibra de realização, e para que se não escravizasse minha
tarefa a situações caprichosas do mundo, distantes dos desígnios
de Jesus, e, sobretudo, para que fosse mantida a impessoalidade
do serviço. Mais tarde, então, com o correr dos anos de edificação,
me enviariam de “Nosso Lar” socorros materiais, cada vez
maiores, à medida que fosse testemunhando renúncia de mim
mesmo, desprendimento das posses efêmeras, desinteresse pela
Francisco Cândido Xavier - Os Mensageiros - pelo Espírito André Luiz 41
remuneração dos sentidos, de maneira a intensificar, progressivamente,
a semeadura de amor confiada às minhas mãos.
“Tudo combinado, voltei, não só prometendo fidelidade aos
meus instrutores, como também hipotecando a certeza do meu
devotamento às seis entidades amigas, a quem muito devo até
agora.”
Otávio, nesse momento, fez uma pausa mais longa, suspirou
fundamente, e prosseguiu:
– “Mas, ai de mim, que olvidei todos os compromissos! Os
benfeitores de “Nosso Lar” localizaram-me ao lado de verdadeira
serva de Jesus. Minha mãe era espiritista cristã desde moça, não
obstante as tendências materialistas de meu pai, que era, todavia,
um homem de bem.
“Aos treze anos fiquei órfão de mãe e, aos quinze, começaram
para mim os primeiros chamados da esfera superior. Por essa
ocasião, meu pai contraiu segundas núpcias e, apesar da bondade
e cooperação que a madrasta me oferecia, eu me colocava num
plano de falsa superioridade, a respeito dela. Em vão, minha
genitora endereçou, do invisível, apelos sagrados ao meu coração.
Eu vivia revoltado, entre queixas e lamentações descabidas.
“Meus parentes conduziram-me a um grupo espiritista de excelente
orientação evangélica, onde minhas faculdades poderiam
ser postas a serviço dos necessitados e sofredores; entretanto,
faltavam-me qualidades de trabalhador e companheiro fiel. Minha
negação em matéria de confiança nos orientadores espirituais e
acentuado pendor para a crítica dos atos alheios compeliam-me a
desagradável estacionamento.
“Os beneméritos amigos do invisível estimulavam-me ao serviço,
mas eu duvidava deles com a minha vaidade doentia. E
como prosseguissem os apelos sagrados, por mim interpretados
como alucinações, procurei um médico que me aconselhou expeFrancisco
Cândido Xavier - Os Mensageiros - pelo Espírito André Luiz 42
riências sexuais. Completara, então, dezenove anos e entregueime
desenfreadamente ao abuso de faculdades sublimes. Desejava
conciliar, à força, o prazer delituoso e o dever espiritual, alheando-
me, cada vez mais, dos ensinos evangélicos que os amigos da
esfera superior nos ministravam.
“Tinha pouco mais de vinte anos, quando meu pai foi arrebatado
pela morte. Com a triste ocorrência, ficavam na orfandade
seis crianças desfavorecidas, porquanto minha madrasta, ao se
consorciar com meu genitor, lhe trouxera para a tutela três pequeninos.
Em vão implorou-me socorro a pobre viúva. Nunca me
dignei aceitar os encargos redentores que me estavam destinados.
“Após dois anos de segunda viuvez, minha desventurada madrasta
foi recolhida a um leprosário. Afastei-me, então, dos pequenos
órfãos, tomado de horror. Abandonei-os definitivamente,
sem refletir que lançava meus credores generosos, de “Nosso
Lar”, a destino incerto. Em seguida, dando largas à ociosidade,
cometi uma ação menos digna e fui obrigado a casar-me pela
violência. Mesmo assim, porém, persistiam os chamados do invisível,
revelando-me a inesgotável misericórdia do Altíssimo.
Contudo, à medida que olvidava meus deveres, toda tentativa de
realização espiritual figurava-se-me mais difícil. E continuou a
tragédia que inventei para meu próprio tormento.
“A esposa a que me ligara, tão somente por apetites inconfessáveis,
era criatura muito inferior à minha condição espiritual e
atraiu uma entidade monstruosa, em ligação com ela, para tomar o
papel de meu filho. Releguei à rua seis carinhosas crianças, cuja
convivência concorreria decisivamente para minha segurança
moral, mas a companheira e o filho, ao que me pareceu, incumbiram-
se da vingança. Atormentaram-me ambos, até ao fim da
existência, quando para aqui regressei, mal tendo completado
quarenta anos, roído pela sífilis, pelo álcool e pelos desgostos,
Francisco Cândido Xavier - Os Mensageiros - pelo Espírito André Luiz 43
sem nada haver feito para meu futuro eterno... Sem construir coisa
alguma no terreno do bem...”
Enxugou os olhos tímidos e concluiu:
– Como vê, realizei todos os meus condenáveis desejos, menos
os desejos de Deus. Foi por isso que fali, agravando antigos
débitos...
Nesse instante, calou-se como se alguma coisa invisível lhe
constringisse a garganta.
Abracei-o com simpatia fraternal, ansioso de proporcionarlhe
estimulo ao coração, mas Dona Isaura aproximou-se mais,
acariciou-lhe a fronte e falou:
– Não chores, filho! Jesus não nos falta com a bênção do
tempo. Tem calma e coragem...
E identificando-lhe o carinho, meditei na Bondade Divina,
que faz ecoar o cântico sublime do amor de mãe, mesmo nas
regiões de além-morte.
CONTINUA AMANHÃ
Nenhum comentário:
Postar um comentário