CONTINUAÇÃO
O CASO VICENTE
Impossível traduzir meu contentamento com a nova companhia.
Vicente, semblante muito calmo, olhar inteligente e lúcido, irradiava
carinho e bondade, sensatez e compreensão.
Disse-me de sua alegria por haver encontrado um companheiro
médico, alojou-me convenientemente junto dele, demonstrando
extrema generosidade fraternal.
Era o primeiro colega na profissão, igualmente recém chegado
das esferas da Crosta, de quem me aproximava de modo
direto.
Trocamos idéias largamente sobre as surpresas que nos defrontavam.
Comentamos as dificuldades oriundas da ilusão terrestre,
a miopia da pequena ciência, os problemas profundos e sedutores
da medicina espiritual.
Vicente, conquanto não houvesse feito ainda qualquer visita
ao plano dos encarnados, em caráter de serviço, admirava Aniceto
extraordinariamente, e punha-me ao corrente dos estudos valiosos
a que se entregava junto dele.
Estava cheio de conceitos entusiásticos. Em pouco mais de
uma hora, nossa intimidade semelhava-se ao sentimento de dois
irmãos unidos, desde muito, por laços espirituais, O novo companheiro
conquistara-me infinita confiança.
Evidenciando muita delicadeza, indagou da minha posição
perante os parentes terrestres, ao que respondi com a história
resumida de minha singular aventura, ao conhecer as segundas
núpcias de minha viúva. Imprimi toda a ênfase possível ao meu
relatório verbal, sensibilizando-me, profundamente, no curso da
narrativa. Em cada pormenor culminante dos fatos, detinha-me de
propósito, salientando meus velhos sofrimentos e relacionando
dissabores que me pareciam insuperáveis.
Vicente ouviu silencioso, sorrindo a intervalos.
Quando terminei a comovida exposição, ele pôs-me a destra
no ombro e murmurou:
– Não se julgue desventurado e incompreendido. Saiba, meu
caro André, que você foi muitíssimo feliz.
– Como assim?
– Sua Zélia respeitou o companheiro até ao fim e o segundo
matrimônio, em tais circunstâncias, não é de admirar.
No meu
caso, porém, a coisa foi muito pior.
E, dado meu justo espanto, o novo amigo continuou:
– Explico-me.
Meditou alguns instantes, como quem alinhava reminiscências,
e prosseguiu:
– Não pode você imaginar como foi intenso o sonho de amor
do meu casamento. Logo após a aquisição do diploma profissional,
aos vinte e cinco anos, esposei Rosalinda, exultante de ventura.
Não levava à esposa tão somente uma situação material confortadora
e sólida, no terreno financeiro, mas também os meus
tesouros de afeto e devotamento. Minha felicidade não tinha
limites. Em pouco tempo, dois filhinhos enriqueceram-me o lar
ditoso. Meu bem-estar era inexprimível. Em virtude das reservas
bancárias, não me especializei na clínica, consagrando-me, todavia,
apaixonadamente, ao laboratório. Atendendo aos meus pendores,
não me foi difícil atrair a confiança de numerosos colegas e
vários centros de estudos, multiplicando pesquisas e resultados
brilhantes. E Rosalinda era a minha primeira e melhor colaboradora.
De quando em quando, notava-lhe o enfado no trato com os
tubos de ensaio, mas minha esposa sabia então calar as contrariedades
pequeninas, a favor da nossa felicidade doméstica. Parecia
compreender-me integralmente. Era, aos meus olhos, a mãe dedicada
e companheira sem defeitos.
Contávamos dez anos de ventura conjugal, quando meu irmão
Eleutério, advogado, solteiro, algo mais velho que eu, deliberou
localizar-se junto de nós. Rosalinda foi inexcedível em atenções,
considerando que se tratava de pessoa de minha família. Eleutério
entrou em nossa casa como irmão. Embora residisse em hotel,
compartilhava dos nossos serões caseiros, sempre bem posto e
interessado em agradar.
Observei, desde então, que minha mulher se modificava pouco
a pouco. Exigiu fosse contratada uma auxiliar que a substituísse
nos meus serviços, alegando que os nossos filhinhos não dispensavam
assistência maternal, mais assídua. Anui, satisfeito.
Tratava-se, afinal, de providência interessante ao bem-estar de
nossos filhos. Contudo, a transformação de Rosalinda assumiu
caráter impressionante. Passou a não comparecer ao laboratório,
onde tantas vezes nos abraçávamos, alegremente, ao vermos
coroadas de êxito nossas pesquisas mais sérias. Preferia o cinema
ou a estação de repouso, em companhia de Eleutério.
Isso me entristecia bastante, mas eu não poderia desconfiar da
conduta de meu irmão. Fora sempre criterioso, em família, não
obstante ousado e filaucioso nas atividades profissionais.
Minha vida doméstica, antes tão feliz, passou a ser de solidão
assaz amarga, que eu tentava iludir com o trabalho persistente e
honesto.
Assim corriam as coisas, quando singular transformação me
alterou a experiência. Pequena borbulha na fossa nasal, que nunca
me trouxera incômodos de qualquer natureza, depois de levemente
ferida, tomou caráter de extrema gravidade. Em poucas horas,
declarou-se a septicemia. Reuniram-se colegas em verdadeira assembléia, junto de meu leito. Inúteis, todavia, todos os cuidados;
anuladas as melhores expressões de assistência. Compreendi
que o fim se aproximava, rápido. Rosalinda e Eleutério pareciam
consternados e, até hoje, guardo a impressão de rever-lhes o olhar
ansioso, no momento em que a neblina da morte me envolvia os
olhos materiais.
Nessa altura, Vicente fez longo estacato, como a fixar reminiscências
mais dolorosas, e continuou menos vivaz:
– Depois de algum tempo de tristes perturbações nas zonas
inferiores, quando já me encontrava restabelecido, em “Nosso
Lar”, certifiquei-me de toda a verdade. Voltando ao lar terreno,
encontrei a grande surpresa. Rosalinda. havia desposado Eleutério
em segundas núpcias.
– Como são idênticas as nossas histórias! – exclamei impressionado.
– Isso é que não – protestou a sorrir.
E continuou:
– Outra surpresa me dilacerava o coração. Somente ao regressar
ao lar, soube que fora vítima de odioso crime. Meu próprio
irmão inspirou a trama sutil e perversa. Minha mulher e ele apaixonaram-se perdidamente um pelo outro e cederam a tentações
inferiores. Não havia que recorrer a divórcio e, mesmo que a
legislação o facultasse, constituiria um escândalo o afastamento
de Rosalinda para unir-se, publicamente, ao cunhado. Eleutério
lembrou, porém, que possuíamos experiências de laboratório e
sugeriu a Rosalinda a idéia de me aplicarem determinada cultura
microbiana, que ele mesmo se incumbiria de obter, na primeira
oportunidade. A pobre da companheira não vacilou e, valendo-se
do meu sono descuidado, introduziu na minúscula espinha nasal,
algo ferida, o vírus destruidor.
E aí tem você o meu caso naturalmente resumido.
Eu estava assombrado.
– E os criminosos? – perguntei.
Vicente sorriu ligeiramente e informou:
– Rosalinda e Eleutério vivem aparentemente felizes, são excelentes
materialistas, por enquanto, e gozam, no mundo transitório,
grande fortuna amoedada e alto conceito social.
– Mas... e a justiça? – indaguei, aterrado.
– Ora, André – esclareceu serenamente –, tudo vem a seu
tempo, tanto no bem quanto no mal. Primeiro a semente, depois
os frutos.
Percebendo-me, porém, as tristes impressões, Vicente concluiu:
– Não falemos mais nisto. Aproxima-se a hora da instrução.
Atendamos às nossas necessidades essenciais, auxiliando os nossos
amados, que ainda permanecem a distância, nos círculos
terrestres. Não se impressione. A árvore, para produzir, não reclama
as folhas mortas. Para nós, atualmente, meu amigo, o mal é
simples resultado da ignorância e nada mais.
CONTINUA AMANHÃ
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