segunda-feira, 5 de setembro de 2011

SEXO E DESTINO - CHICO XAVIER E ANDRÉ LUIZ


CONTINUAÇÃO

agora que a obsessão provocava tragédias. E ele mesmo, que nunca auxiliara a filha, na edificação da vida íntima, não podia queixar-se. Cismou, cismou e, depois das dez, chamou a esposa.
Dona Márcia respondeu.
Interpelada, comunicou estar descansando, junto de pessoas amigas. Ciente da morte de Marita, confessou-se aliviada. Não a desejava sobrevivendo ao desastre, deformada como a vira. Alinhou comentários desairosos, fez chiste.
Pela inflexão com que se manifestava, o esposo reconheceu-a num dos dias mais infelizes. Sarcasmo em cada sílaba. Irritação à mostra.
Cláudio apequenou-se, rogou desculpas. Não queria interromper-lhe a excursão. Não conseguia, porém, sossegar-se quanto à filha doente. Se possível, ensinasse a ele o melhor caminho de visitá-la com urgência. Solicitava-lhe o nome dos médicos amigos.
Esperava colher-lhes a opinião.
A palavra dele deslizava tão mansamente no fio que a interlocutora mudou de jeito. Amaciou-se. Informou que precisava completar informações com amigas, que ele, Cláudio, aguardasse um minutinho.
Transcorridos instantes breves, voltou participando que viria ao Rio, na manhã seguinte, a fim de conversarem. Guardava “certos assuntos” para tratar com ele, mas preferia falar-lhe de boca a boca. Que ele a esperasse no Flamengo. Chegaria cedo, de automóvel, apenas com o objetivo de vê-lo e retornar ao hotel serrano em que repousava.
Efetivamente, no dia imediato, antes das nove da manhã, logo após entender-se com Dona Justa, em matéria caseira, viu-se o bancário defrontado pela esposa.
Dona Márcia parecia regressar de outro país. Adereçada, sorridente.
Os cabelos em penteado excêntrico realçavam-lhe a graça, (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 2520) remoçando-a inteiramente. Harmonizava-se a maquilagem com o róseo do vestido novo. O porte se lhe erguia nos sapatos de salto alto, com a esbelteza da cegonha jovem, quando caminha descuidada em campo livre. Exibia cores, desfilava perfumes.
Contudo, a flor humana em que se metamorfoseara não escondia para nós as larvas que a carcomiam. Jazia Dona Márcia assessorada por pequena corte de vampirizadores desencarnados que lhe alteravam a cabeça.
Mesmo à nossa frente, que nos acostumáramos a identificá-la por matrona difícil, mas ajustada ao lugar que as conveniências lhe indicavam, surgia quase irreconhecível.
Metalizara-se-lhe a voz, o olhar fizera-se mais frio.
De entrada, cumprimentou o marido e Dona Justa com ademanes de protetora complacente.
Assustou-se Nogueira. Não compreendia. Padeciam em casa a provação de uma filha morta e outra enferma... Por outro lado, Márcia, pelo fio, anunciara-se esfalfada. De que maneira se amoldava a uma excursão, assim festiva? Instintivamente, recordou Gilberto preocupado com “certas coisas” e a própria esposa prometendo-lhe “certos assuntos” e, apreensivo, perguntava-se que sucessos ocultos se lhe vedavam ao coração... A recém-chegada sentou-se, cruzando as pernas com desenvoltura
juvenil, e, sem mais aquela, reportou-se à pressa que trazia.
Nogueira indagou por Marina.
Dona Márcia, evidentemente interessada em outros problemas, sintetizou, quanto pôde, a história da enfermidade, indicou o psiquiatra que respondia pelo caso, aludiu ao conforto de que a filha se rodeava na casa de saúde e exalçou a generosidade do senhor Torres, que não calculava sacrifícios para que lhe sobejasse assistência. Comentou largamente a nobreza do viúvo de Dona (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 253) Beatriz, cuja grandeza de alma apenas agora – dizia, entusiasmada –, começava a conhecer. E, finalmente, propôs um ajuste de providências pelas quais se transferisse a menina para um sanatório em São Paulo, onde estagiasse, no tratamento devido, por alguns meses. Bastava que ele, Cláudio, concordasse. Nemésio, em sinal de gratidão da firma pelos serviços prestados por Marina, custearia todas as despesas.
Cláudio escutou, humilde, e obtemperou que a situação talvez não fosse tão grave, que a palavra “meses” o alarmava. Acreditava que a filha, conjugando medicação do corpo e da alma, lograria recuperar-se em menos tempo.
Argumentou, sensato. Demonstrou, sem afetação de virtude, que não lhes seria lícito abandoná-la, destacou que a proteção dinheirosa significava muitíssimo, principalmente naquela hora em que os cuidados exigidos por Marita lhe haviam esgotado as reservas, mas admitia que a filhinha conturbada reclamava deles carinho, dedicação.
Após enfileirar judiciosos apontamentos que a interlocutora recebia, contrafeita, levantou para ela os olhos súplices e convidou-a, com dignidade, a abraçar, junto dele, uma existência nova.
Vida de harmonia, de construção recíproca. Sincero, confiou-lhe todos os propósitos diferentes que edificara naqueles dias de luta,
dos quais emergira transformado. Descerrava-lhe o íntimo. Fizera-se espírita-cristão. Sentia-se outro homem. Participou-lhe que, entre ele e o passado, erigia-se a fé por barreira de luz. Aspirava, agora, à bênção do lar, à tranqüilidade da família... Comprometiase a adotar conduta reta, ser-lhe-ia companheiro leal. Não lhe constrangeria o ânimo a aceitar-lhe as idéias; no entanto, anelava mostrar-lhe quanto a amava... Disse-lhe que vinha orando, desde a véspera, rogando a Jesus o inspirasse, no sentido de revelar-se a ela, abertamente, para que ela, Márcia, lhe perdoasse e o compreendesse... Concedia-lhes Deus o futuro à frente. Penitenciar-se-ia (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 254) quanto aos erros cometidos, dispunha-se a testemunhar-lhe fidelidade, afeição...
A senhora, porém, aprumou-se de um salto, plantou as mãos na cintura, numa risada de escárnio, e zombeteou: – Sim, senhor! o diabo, depois de velho, se fez ermitão!. .. sempre a mesma história!...
E aditou com ar de troça: – Era só o que faltava! Você espírita!... Eu logo vi!... Juro que no hospital você já estava nessa baboseira. Aquele jeito de conversar, quando Nemésio e eu fomos lá, aquele modo de tratar Marita!... Ora, ora!... quem teria hipnotizado você dessa forma?...
O marido, arrancado à esperança que alentava no sentido de se reconciliarem para uma experiência doméstica respeitável e batido na fé que principiava a entesourar, objurgou, francamente ofendido: – Mas você conhece o Espiritismo?
Márcia, obsidiada, com a disposição de quem procura deixar o carreiro, trilhado desde muito, para arrojar-se a outro caminho, revidou, irônica: – Perfeitamente, conheço sim! Quando Aracélia morreu, andei conversando nisso com amigas e acabei desistindo. Espiritismo é um movimento de pessoas, querendo sentar cachorros no banco e apanhar estrelas como se fossem laranjas!... Bobagem!
Nós todos no mundo somos canalhas!... Eu sou, você é, os outros são!... Os espíritas me parecem cães querendo sentar na poltrona da falsa virtude. Asneira deles! Temos de rolar é no chão mesmo...
– Eu não penso assim... – Pois se você pensa de maneira diversa e se é verdade tudo o que você me falou, é pena que a mudança chegue tão tarde!...

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: