quinta-feira, 11 de agosto de 2011

SEXO E DESTINO - CHICO XAVIER E ANDRÉ LUIZ


CONTINUAÇÃO

CAPÍTULO 14

Adiantamo-nos, Félix e eu, ao encontro da jovem.
Marita estugava o passo, amarfanhada, aturdida.
Da Lapa, onde se localizava a habitação coletiva que vínhamos de deixar, até à Cinelândia, correra quase.
Sentia-se tangida por todos os ventos da adversidade, expulsa da Terra. Traída nos mais íntimos sentimentos de mulher, a injúria experimentada transcendia para ela toda a noção de sofrimento.
Teria agradecido ao homem que conhecera por pai o punhal ou o veneno, mas não dispunha de forças para perdoar-lhe aquela afronta. A revolta sacudia-lhe os membros. Tremia, desesperada.
Na cabeça, uma idéia só, ganhando extensão: o suicídio. Ansiava
atirar-se sob os carros que deslizavam à frente. Morrer... desaparecer... meditava, chorando. Entretanto, era preciso viver um tanto mais. Restava um enigma: Gilberto. Por que se esquivara, a substituir-se, cruel? Que trama teria havido entre eles? Lera-lhe a missiva, conhecera-lhe a letra. Escrevera, afirmando vir... Por que desistira? Como soubera Cláudio do encontro? Através de Crescina?
As interrogações sem resposta convulsionavam-na toda. Desvairava.
Rangia os dentes, querendo gemer.
A morte, a morte!... – pedia, mentalmente, tentando apertar os lábios que se abriam sem voz.
Ainda assim iria consultar Gilberto, sugeriam as últimas réstias do sonho desmantelado. Sim, aprovava no turbilhão dos pensamentos
em descontrole, era necessário ouvir Gilberto... Uma vez só que fosse. Imperioso conhecer a verdade, morrer com a verdade... (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 154).
Quem saberia? Talvez que o rapaz lhe estendesse um fio de luz, por onde se desvencilhasse da sombra... Se ele dissesse: “vive, vive para mim”, conseguiria esquecer o insulto daquela noite, continuando a viver... Ao contrário, tudo extinto...
Caminhando apressada e indiferente à aragem que lhe acarinhava
os cabelos, repelia-nos, em espírito, as maiores demonstrações de ternura e consolo.
Nenhuma idéia que se lhe não afinasse com a repulsão.
Decididamente, se Gilberto participara da armadilha a que se arrojara, inocente, estava tudo acabado. Tão-somente lhe restaria o desprezo final.
Alcançou o Largo do Passeio e parou um momento... Fitou,
angustiada, aquelas árvores frondejantes que tanto amava... Galharias balouçadas ao vento pareciam chamá-la para abraços de adeus... Marita soluçou, teve medo, mas seguiu adiante... Varou a massa risonha que deixava os cinemas, recordou Gilberto e a menina feliz que ela fora, vendo namorados saboreando pipocas; contudo, seguiu, seguiu sempre, vencendo encontrões. Atingindo a Praça Marechal Floriano, abancou-se, vasculhando o cérebro atormentado...
Sentia-se, enfim, absolutamente sozinha, completamente desamparada.
Comprimindo a cabeça entre as mãos, queria idéias, alguma idéia que lhe ofertasse saída do antro pungente da angústia.
Debalde, irmão Félix, ao enlaçá-la, lhe assoprava conceitos de paciência e cordura, inutilmente se referia à bondade e ao perdão. Aquele coração juvenil, conquanto bondoso, figurava-se, agora, um lago límpido que vulcão oculto, de inesperado, fazia referver. Todas as orlas abertas, em bocas de incêndio, pelas quais as ondas do pensamento fugiam, precipitadas. Nenhum lugar (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 155) exposto à receptividade, nenhum ponto marcado ao equilíbrio e ao
silêncio.
No crânio tumultuado, uma idéia surdiu, ensejando-lhe tênue fio de esperança. Telefonar!... Poderia telefonar para a residência dos Torres. Gilberto, indubitavelmente, estaria ao pé da genitora enferma. Além disso, Marina viajara pela manhã. Uma razão a mais para que se não retirasse do carinho necessário à doente.
Ainda assim – refletiu –, seria muito provável que ele, a distância, lhe embaísse a boa-fé. Insopitável desconfiança amargava-lhe o coração qual raiz espinhosa. Não descortinava, contudo, saída melhor. Conversar! Ouvi-lo! Tinha sede da verdade, ansiava saber, saber!...
Raciocínios contundentes entrechocavam-se-lhe na cabeça atribulada...
Não, não retornaria ao lar do Flamengo... Entre voltar à casa dos Nogueiras e morrer, preferia morrer...
Perscrutou circunstâncias, analisou-se, meditou, meditou...
Pensamento estranho assomou-lhe, de súbito. Disfarçar-se, fingir. Para alcançar a verdade, mentiria.
Entraria, sim, no jogo com aquilo que se lhe apresentou à imaginação, como sendo a cartada final.
Marita concluía que ela e a irmã, pela intimidade e pela convivência, tinham vozes semelhantes, maneiras afins. Chamaria o rapaz como sendo Marina, imitar-lhe-ia, quanto possível, o tom de palestra, repetir-lhe-ia as palavras de uso mais freqüente no trato doméstico. Simularia estar voltando, inopinadamente, de Teresópolis.
O moço, assim abordado, confessaria, de modo inequívoco, tudo o que sentisse, com respeito a ela própria.
A sofredora criança consultou o relógio-pulseira. Dez minutos para as nove.
Desejava ambiente familiar para a ligação. Lembrou-se de Dona Cora, cliente da loja em Copacabana, que se lhe fizera (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 156) amiga íntima e em cujo apartamento costumava telefonar, quando
inevitável. Levantou-se, algo reanimada, para a busca de condução; entretanto, somente aí deu pela falta da bolsa que largara na fuga. Faltava o dinheiro, mas não desistiu. Acenou da calçada ao primeiro táxi disponível. Consultou o motorista se lhe podia fazer o favor de atender, com pagamento à porta de casa. Estava sozinha e esquecera-se do horário, O profissional correto notou-lhe a tristeza e o acanhamento. Compadeceu-se. Alegou que recusava, sistematicamente, conduzir pessoas que encomendavam serviço, criando problemas; entretanto, no caso, faria exceção e aquiesceu.
A breve trecho, seguíamos, junto dela, para Copacabana.
No endereço indicado, saltou, fez-se acompanhar pelo condutor ao apartamento da amiga, sendo recebida com a lhaneza que esperava. Segredou, envergonhada, para Dona Cora que se achava em apuros, se ela não dispunha, naquela hora, de algum dinheiro para emprestar. Pagaria no dia seguinte. A dona da casa, espontânea e bondosa, não titubeou... Abriu pequena gaveta e falou sorrindo: “só quatrocentos cruzeiros”. O marido não estava. Marita, reconhecida, explicou que a importância bastava. Depois da corrida paga, disse para a senhora que andara em serviço extra, fora em seguida ao Leblon visitar um doente, afetando que somente naquele instante conseguiria tomar o ônibus para casa. Antes disso, porém, tinha necessidade de um telefonema. Conversação com pessoa muito íntima. Dona Cora cedeu-lhe a peça inteira e acrescentou, gentil, que ia arranjar um cafezinho. Falasse à vontade, ninguém a interromperia. As duas filhinhas dormiam, há muito, e o esposo que substituía um colega, no trabalho, não regressaria tão cedo. A dona da casa afastou-se para a cozinha, isolando a sala.
E, ali, diante de nós, sem que nos percebesse, de leve, os corações
solidários, Marita discou, sofreando a emoção de modo a fantasiar a alegria da outra.

CONTINUA AMANHÃ

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