quarta-feira, 27 de julho de 2011

SEXO E DESTINO - CHICO XAVIER E ANRÉ LUIZ


CONTINUAÇÃO

Em outras ocasiões, chegara a enunciar semelhante inquirição, com palavras redondas, claramente pronunciadas e repetidas.
Por que tanto ódio? indagava a si mesma. Não contava receber uma ternura que os atritos incessantes haviam incinerado entre ambos; contudo, cria-se com direito a pequeno retalho de acatamento.
Se ele adoecia, de leve, conquanto não o amasse, vigiava-lhe a cabeceira. Zurzia o clínico da família pelo telefone. Todas as providências à hora. Entretanto, ao referir-lhe o tratamento que reputava importante, a fim de evitar uma cirurgia comprometedora, recebia dois monossílabos secos que o marido lhe pespegava no rosto, como se a repelisse com dois calhaus.
Persistindo o silêncio que se alongava, Cláudio fez menção de retirar-se; contudo, a esposa frustrou-lhe o impulso, exclamando, agora irritadiça:
– Não saia. É preciso que você fique. Esta casa não é minha só. Acaso, não está vendo? Marina e Marita... Criam-se os filhos com desvelo, com carinho... Em crianças, são anjos; crescidos, são pesadelos. Tenho sofrido calada, mas agora... Isso não pode continuar sem que você se mexa. Entre uma e outra, não é possível a indiferença. Acolhi essa menina estranha em meus braços como se fosse minha própria filha. Suportei afrontas, esqueci minha saúde, meu tempo... Não me poupei, fiz o que pude... Nada lhe faltou, entretanto, hoje...
– Hoje, o quê? – revidou o esposo, admirado.
– Pois você não percebe a humilhação a que Marina se expõe? – acentuou a companheira, em lágrimas súbitas, qual se estivesse habituada a chorar, quando quisesse. – Você não enxerga as dificuldades de nossa filha?
Cláudio riu-se, como quem decidira zombetear.
– Márcia, deixe de cenas... Você fala em Marina, como se a nossa desmiolada estivesse na forca. Não entendo. Vejo-a feliz e (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 100) desorientada, como nunca. Se me detiver em qualquer problema dela, será para admoestá-la, reprimi-la. Não fosse você com o desregramento de suas concessões e com os seus maus exemplos,
haveria de corrigi-la, ainda que obrigado a interná-la no hospício...
– Que ouço, meu Deus? – gritou a senhora.
Estancara-se-lhe o pranto, alarmada que se achava, ao verificar o rumo improviso do entendimento.
– Você ouve a pura verdade – prosseguiu Cláudio, implacável.
– Ainda anteontem, impelido por dever da profissão a comparecer num coquetel, oferecido a um dos chefes, numa casa de regalias noturnas, fui constrangido a pretextar uma enxaqueca e afastar-me. Sabe por quê? Nossa filha, que você pretende inculcar por santa, estava lá, positivamente nos braços de um cavalheiro maduro e bem-posto, que não a beijava paternalmente. Senti tanta vergonha, que pedi a um colega me representasse, e sai, à pressa, antes que Marina me percebesse.
– Oh! a pobrezinha! ... – objetou Dona Márcia, faces em fogo, tremendamente revoltada.
Naquele instante, os dois tiravam, mecanicamente, os últimos disfarces. Postavam-se, em espírito, um à frente do outro, com rudeza indissimulável. Dois inimigos soberanos, aversão contra aversão.
E o diálogo azedo continuou:
– Pobrezinha, por quê?
A esposa mediu-o, de alto a baixo, com um olhar de zombaria, e passou a acusá-lo:
– Não quero discutir agora a sua presença de homem velho e casado, numa casa de tolerância, pois não acredito nessa história de homenagens a chefes, em horas avançadas da noite. Você foi (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 101) sempre imoral, indigno, mentiroso, mas, por amor à família, esqueço tudo isso, para que você conheça toda a situação...
Refletindo na conveniência de sensibilizá-lo para os efeitos a que se propunha, Dona Márcia baixou calculadamente a escala de rispidez, abrandando a inflexão da voz que se tornara por demais agressiva.
– Cláudio, atenda – continuou quase melíflua –, Marina, obediente, nunca me ocultou a verdade. Não proceda com malícia; desde a piora da esposa do senhor Nemésio, vem repartindo, caridosamente, o tempo, entre as obrigações do emprego e o lar do chefe, onde a infeliz senhora vem morrendo, pouco a pouco...
Impossível que você não lhe admire a abnegação, porque, de modo algum, precisaria interessar-se pela vida íntima da família Torres, a ponto de velar junto deles, por várias noites consecutivas, por simples espírito de sacrifício... Não sei se você chega a vê-la, quando volta de manhã, mostrando fundas olheiras e faces pisadas.
Na mente inventiva do interlocutor, entretanto, operava-se complicada reviravolta. Assinalando as palavras injuriosas de Dona Márcia, sentira ímpetos de esbofeteá-la. A indignação ruborizara- o; todavia, conteve-se. Não que desistisse de revidar chasqueando, mas permanecia convicto de que Marita escutava. Aspirava a conquistá-la a qualquer preço. Mormente agora que se declarara, não estava inclinado a recuar. Prosseguiria.
Dona Márcia, enganada, aceitara a versão do pesadelo e acreditava que a moça dormisse, de vez que lhe recebera a presença no quarto sem dizer palavra.
Ele, porém, sabia-se ouvido, examinado. Não adotaria qualquer procedimento incompatível com a galanteria que começara a desenvolver. Se esbravejasse, agravaria a distância. Deliberou agüentar remoques e insultos, fossem quais fossem, estudando como orientar-se na conversa para tirar o melhor partido. (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 102).
Além disso, o amigo desencarnado, ao lado dele, acalentavalhe a rijeza de alma, insuflando-lhe idéias. A fabulação de um complementava-se no outro. Concluíam, juntos, que se fazia mais razoável para eles examinar minudências e falar com intenção.
Manejariam Márcia para alcançar Marita. A interlocutora serlhes-ia instrumento. Usa-la-iam por trampolim, rumo ao alvo.
Todas essas considerações relampeavam no espírito de Cláudio, enquanto a senhora se empenhava justificar-se, na defesa da filha. Dominado pelos novos pensamentos, não sorriu, mas suavizou a expressão, como quem se resigna aos ditames da paciência.
Algo desarmada por aquela impassibilidade que se lhe figurava benevolência, Dona Márcia continuou:
– Acontece que o senhor Torres se encontra francamente desarvorado, diante da tragédia que a fortuna dele não pode conjurar.
Dinheiro farto e coração abatido, negócios prosperando e morte à vista. Nossa menina compadeceu-se. Tanto amparou a doente que acabou descobrindo os sofrimentos do homem que se aproxima, conscientemente, da viuvez... É por isso que vem buscando revigorá-lo, como pode...
– Mas, assim como estão fazendo? Afogando-se em bebidas e prazeres noturnos, em que os dois se assemelham a duas crianças destemperadas? Não os vi rezando pela tranqüilidade da enferma...
– Deixe de ironias. Você, com toda a certeza, numa situação igual, não se consolaria com lágrimas, procuraria distrações. Não há inconveniente algum em que o senhor Torres, numa hora dessas, se dirija para um ambiente alegre, a fim de ganhar forças, e não vejo maldade em que trate Marina por filha dele próprio, afagando-a por boneca mimada que sempre foi. Muito justo, muito claro. Dona Beatriz e o esposo conseguiram somente um filho, não tiveram, como nós, a ternura de uma filhinha no lar e nem adotaram alguma pequenina estranha a eles. Marina dá conta

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: