terça-feira, 26 de julho de 2011

SEXO E DESTINO - CHICO XAVIER E ANDRÉ LUIZ

CONTINUAÇÃO

CAPÍTULO 9

Instalados na sala de visita, os cônjuges entrefitaram-se de estranha maneira. Adversários declarados, em tréguas cordiais.
Dona Márcia definia-se. Espécime comum das damas que lutam, garbosas, contra as arremetidas do tempo. Ninguém lhe atribuiria os quarenta janeiros integralmente dobados. Os cabelos abundantes, que os líquidos medicinais mantinham perfeitamente escuros e brilhantes, acomodavam-se num penteado gracioso que lhe guarnecia o rosto, semelhante ao das pessoas que se maquilam para efeitos de arte e que nunca se deixam analisar realmente sem que a água quantiosa lhes restitua os poros à carícia da Natureza.
Delgada, na magreza característica dos que usam moderadores do apetite para a manutenção do peso ideal, apresentava-se em figurino da alta. O fundo alvo do linho, ligeiramente estampado de pequeninas flores róseas, dava-lhe ao vestido primoroso certa diafaneidade que lhe realçava a beleza quase outoniça.
Era a mesma criatura das telas mentais de Marina, exibindose, porém, de modo diverso, espécie de livro, claramente identificável, mas exposto numa encadernação mais viva e mais rica.
Pela herança e pela convivência, talhara, sem dúvida, o aspecto da filha única, porquanto, sentada agora, lembrava Marina em todos os traços, conquanto muito mais asserenada e amadurecida.
Longe de aparentarem a verdadeira condição de mãe e filha, podiam ser interpretadas à conta de irmãs, salientando-se que Dona Márcia se revelava talvez mais simpática, pela brandura estudada dos gestos.
Via-se-lhe com tranqüilidade o sorriso espontâneo, sorriso, no entanto, que mostrava o engenhoso artifício dos que se distanciam deliberadamente dos problemas alheios para que não lhes constituam (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 96) empeço ao avanço. Doçura trabalhada do egoísmo atencioso, pronto a sorrir, nunca a se incomodar.
Ainda assim, os olhos, ah! os olhos traíam-lhe a alma sibilina.
Fisgados no esposo, pareciam interessados em agarrar-lhe as mínimas reações, em proveito próprio.
Ela não aspirava a conhecer qualquer vestígio da conduta dele, anelava encobrir-se. Serena e bem-posta, renteando o marido, dava a impressão de um viajante hábil, preocupado em ilaquear o guarda-barreira, a fim de seguir, incólume, caminho adiante, sem largar as aquisições clandestinas. Por outro lado, o marido assemelhava-se ao guarda-barreira, calejado no suborno, mais aplicado em resguardar-se, que em denunciar viajores, tão matreiros quanto ele próprio. Naquela hora, sobretudo, em que fora quase detido em culpa flagrante, esmerava-se em mesuras. Amodorravase para ouvi-la, com a pachorra de um cão astucioso que parasse de caminhar, atento às falcatruas do gato.
Para Cláudio, em tal circunstância, valia estudar tudo, ouvir tudo. Afinal, aquilo era inevitável. Márcia chegara ao quarto de Marita num momento psicológico. Imperioso esfumar-lhe qualquer dúvida ocorrente, à custa de uma tolerância que não mais praticava, desde muito. Para isso, estirava-se, ali, sossegado e complacente.
Nos dois, porém, flutuava a desconfiança recíproca. Duas bocas que se entendiam, duas cabeças que discordavam uma da
outra. Cada frase vinha pré-fabricada na garganta, dissimulando o pensamento.
Adocicando a voz, a esposa comentou os aborrecimentos no bufete do baile beneficente em que havia funcionado. Muita gente.
Alguns jovens embriagados, forjando obstáculos. Garotos furtando. Por tudo isso, estafara-se. (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 97)
Desconfiando que o marido, não obstante mostrar-se quase afetuoso, não se inclinaria a longa conversação, quis reter o momento raro, tornando-se mais terna.
Afável, estendeu-lhe prateada carteira. Cláudio agradeceu. Não queria fumar. Ela, no entanto, bateu, várias vezes, a ponta do cigarro, de encontro a pequenina bolsa metálica, fez fogo num isqueiro diminuto e, após envolver-se em baforadas, relaxou-se na poltrona, sugerindo a intenção de exprimir-se mais à vontade.
– Imagine você – aduziu, cuidadosa –, que embora o sarau esteja longe de terminar, larguei tudo. O leilão de prendas esperava por mim, quando senti um constrangimento esquisito. Tive medo.
Passei minhas obrigações para Dona Margarida e voltei. Atormentava-me, supondo houvesse algo atrapalhado em casa, alguma ligação elétrica esquecida, a presença de algum malfeitor. Vejo, porém, que você talvez tenha tido o mesmo palpite e chegou antes, retificando o fogão... Felizmente, tudo passou... Mesmo assim, reconheço que o meu regresso foi providencial, pois, desde muitos dias, venho espreitando um momentinho em que você
esteja calmo e bem-humorado, como agora, para tratarmos, juntos, de assunto sério... Coisa que nos toca de perto, que não posso decidir sem você...
Neves e eu notamos, para logo, o regime de choques e contrachoques em que respiravam aquelas duas almas adversas, aprisionadas socialmente uma à outra, por exigências da provação.
Inferindo que a companheira se lhe aproveitaria da benevolência eventual para chamá-lo a questões de responsabilidade, Cláudio despiu a máscara afetiva com que a brindara, de início, e, taciturno, colocou-se em guarda. Do sorriso, tornou ao sobrecenho. Fino sarcasmo tisnou-lhe os modos. Comandou a palavra, buscando, em vão, disfarçar o azedume. Afirmou-se fadigado, alegou esgotamento adquirido em horários de serviço extra e rematou, pedindo (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 98) à esposa resumisse, quanto possível, o que tinha a dizer-lhe.
Queria ler, pensar, refazer-se.
A esposa fingiu não ver o olhar irônico que ele lhe endereçava e começou referindo-se ao cansaço de que se sentia possuída.
Possivelmente, ele próprio ignorasse; entretanto, submeterase a vários exames, por solicitação do ginecologista. Desde muito, atravessava as noites em claro, sofria palpitações, sufocações, sensação estranha de peso, calores no peito. O médico acreditava em menopausa precoce e receitara. Ela, contudo, supunha-se depauperada, neurastênica. Exauria-se nos problemas domésticos.
A arrumadeira despedira-se. E, desde que se fora, via-se obrigada a passar roupa, encerar e, de certo modo, auxiliar no fogão para que Dona Justa não esmorecesse. O conserto da geladeira custara um dinheirão. As contas, no fim do mês, haviam aumentado.
Marina trouxera duas gratificações que recebera em serviço extraordinário, mas, ainda assim, estava onerada. Tinha necessidade de quinze mil cruzeiros.
Nesse tópico da entrevista, o interlocutor fitou-a, sarcástico, e indagou:
– É só?
A interrogação, carregada de zombaria, pairou no ar da mesma forma que uma chicotada cortante.
Dona Márcia emudeceu, ao impacto da desconsideração inesperada.
O marido não dispensara sequer a mínima atenção aos padecimentos orgânicos de que se queixara. Desconhecia-lhe, de propósito, os achaques. Enquanto relacionava os incômodos de que se via acometida, assustara-se ao divisar-lhe a dura expressão dos olhos frios. Conhecia aquela atitude gelada de profundo desdém.
Ao passo que se lamentava, tinha a impressão de que ele, Cláudio, lhe perguntava em pensamento: “por que não acaba você de morrer?

CONTINUA AMANHÃ

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