domingo, 17 de julho de 2011

SEXO E DESTINO - CHICO XAVIER E ANDRÉ LUIZ

CONTINUAÇÃO

pelo cultivo da oração ou do estudo. Nenhum dos quatro componentes da equipe doméstica se inclinava para o serviço ao próximo.
À face disso, não obstante amasse Cláudio com paternal solicitude, não se sentia autorizado a localizar-lhe, na residência, servidores sob sua orientação, sem objetivos sérios que lhe fundamentassem a atitude.
Não lhe sendo lícito assim proceder, satisfazendo a mero capricho, reconhecia-se impelido a comparecer, sob aquele teto, exclusivamente de quando em quando, ou rogar a colaboração de amigos itinerantes. Neves e eu, pesarosos, ao vê-lo partir, destacamos nossas deficiências, mas prometemos boa-vontade. Permaneceríamos de sentinela e, se alguma eventualidade ocorresse, apelaríamos na direção dele.
Félix sorriu e informou que Amaro, o enfermeiro de Beatriz,
e cooperadores diversos operavam nas cercanias. Todos dedicados, amigos, prontos a auxiliar, embora sem qualquer obrigação para isso. Otimista, acrescentou que, na hipótese de necessidade, o pensamento preocupado funcionar-nos-ia por sinal de alarme.
Achamo-nos a sós, em serviço.
Findo o ligeiro intervalo, retomamos a análise em curso. Observei que Neves se esmerava, mais atentamente, em ser útil.
Marita, que se alheara das próprias reminiscências, por instante rápido, voltou, automaticamente, a memorizar, expondo-nos à vista as telas do passado próximo, que lhe eram abordáveis ao conhecimento.
Mergulhada na imaginação, qual se devaneasse, em conta própria, surpreendia-se mentalmente no regaço materno ou colada à irmãzinha, na segurança inocente de quem se supunha plenamente ajustada ao quadro familiar. Revia Cláudio, a sustê-la nos (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 62) braços, por flor tenra desabotoada num tronco juvenil, transmitindo-lhe a impressão de pai legítimo.
Oh! a felicidade fugidia da infância!... As doces convicções dos dias primeiros! Como suspirava pelo retrocesso do tempo para dormir na simplicidade!
Súbito, confrangeu-se-lhe a alma, como se implacável bisturi lhe retalhasse os nervos. Vimo-la cair numa explosão de lágrimas.
Coloriu-se-lhe na mente a festa distante que lhe havia comemorado o término do primeiro curso escolar, nove anos antes. Detinhase no instituto garrido, nos adeuses aos colegas, nas palavras de saudação e reconhecimento que proferira, feliz, diante dos mestres, e nos beijos que recebera sobre os cabelos a se lhe derramarem nos ombros. Depois... em casa, o olhar diferente de Dona Márcia, no aposento à porta fechada.
Iniciara-se-lhe, desde então, o conflito da vida inteira. A revelação inesperada ferira-lhe o espírito, à maneira de pedra contundente.
Esvaecera-se-lhe, de improviso, a alegria infantil. Sentirase criatura humana adulta, amadurecida e sofredora, de um momento para outro. Não era filha da casa. Era órfã, adotada pelos corações queridos, aos quais amava tanto, julgando pertencerlhes.
Isso lhe arrebentara o coração. Pela primeira vez, chorara com medo de enlaçar-se àquela a cujo peito se albergava, até ali, nas horas difíceis, como se se aninhasse no refúgio maternal.
Sentia-se machucada, sozinha. Dona Márcia, diligenciando esclarecer com evidente bondade, explicava, explicava. Ela, até então menina estouvada e risonha, repentinamente torturada, ouvia, ouvia. Ansiava perguntar o porquê de tudo aquilo, mas a voz calara-se-lhe na garganta. Era preciso aceitar a verdade, conformar-se, sofrer. Esforçara-se a mãe adotiva por diluir a amargura da notificação no bálsamo do carinho, mas não se esquecera de lhe dizer em tom conselheiral: “você deve crescer sabendo tudo, melhor saber hoje que amanhã; filhos adotivos, quando crescem (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 63) ignorando a verdade, costumam trazer enormes complicações, principalmente quando ouvem esclarecimentos de outras pessoas”, e acrescentara, diante do silêncio em que ela afogava as próprias lágrimas: “não chore, estou apenas explicando; você sabe que criamos você por filha, mas é necessário que conheça a realidade toda; adotamos você, lembrando Aracélia, tão amiga, tãoboa.”
E os informes foram imediatamente complementados com a exibição de fotografias e relíquias da genitora suicida, arrancadas de pequena caixa de madeira que Dona Márcia trouxera.
Espantada, revirara nervosamente nas mãos aqueles retratos e adereços de moça pobre. Sensibilizara-se ao ver os colares de fantasia, os anéis de plaquê. Era tudo quanto restava daquela mãe que desconhecia. Contemplou a imagem dela nas fotos que o tempo amarelecera e experimentou profunda e indizível atração por aqueles olhos grandes e tristes que pareciam arrebatá-la do quarto para um mundo diferente.
Não amadurecera, porém, o raciocínio para pensar nas angústias daquela mulher que o sofrimento abatera. A reflexão, em torno da mãezinha desencarnada, durara um momento só. Achavase melindrada em demasia para deslocar-se facilmente da sua dor.
Ouvira Dona Márcia, ao despedir-se, arrecadando aqueles ternos vestígios do passado, sem prestar-lhe maior atenção. Aquelas palavras: “adotamos você, lembrando Aracélia tão amiga,  boa”, percutiam-lhe na cabeça.
Então, era assim que a despachavam para a estação da orfandade em que lhe competia viver? E os beijos do lar que admitia lhe pertencerem? E os mimos domésticos que julgava partilhar com Marina em partes e direitos iguais?
Figurara-se-lhe Dona Márcia decididamente empenhada em falar-lhe sem a menor manifestação do efusivo amor que lhe caracterizava os gestos de outras horas. Demonstrara-lhe carinho, (Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 64) sem dúvida, mas racionava os afagos, qual se quisesse traçar, dali em diante, severa fronteira entre ela e a família. Imaginava-se, por isso, esbulhada, ferida. Fora simplesmente albergada, tolerada, enganada. Não era filha, era órfã.
A inteligência precoce compreendia toda a situação, conquanto não conseguisse inclinar-se, naquele dia, a qualquer agradecimento pela compaixão de que se reconhecia objeto, assaltada qual se achava pelo orgulho infantil.
Em seguida a pausa rápida no curso das comovedoras reminiscências, Marita desdobrou-nos à vista uma cena enternecedora e inesquecível.
De minha parte, nunca registrara uma dor de criança, assim, tão funda.
Ah! sim, aquele fato nunca mais se lhe desvinculara da memória.
Quando a esposa de Cláudio a deixou em pranto desconsolado, viu a cadelinha da casa, magra e anônima, que Marina, semanas antes, recolhera na rua. O animalzinho abeirara-se dela, como se lhe aderisse à mágoa, lambendo-lhe as mãos. Ela, por sua vez, retribuíra-lhe a carícia, qual se lhe transferisse toda a carga de amor que acreditava lhe fora restituída naquele instante, por Dona Márcia, e, chorando, abraçou-se à cachorrinha afetuosa, gritando num desabafo: “ah! Jóia, não é só você que foi enjeitada! eu também...”
Desde esse dia, transfigurara-se-lhe a vida. Perdera, de todo, a espontaneidade.
A partir da revelação que não mais se lhe desencravou do cérebro, conjeturava-se diminuída, lesada, dependente.
Semelhante suplício moral, que adquirira aos onze de idade, atenuava-se tão-somente pela dedicação incessante do pai adotivo que se lhe confirmava mais terno, à medida que Dona Márcia e a filha se lhe afastavam da comunhão espiritual.

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: