quinta-feira, 7 de julho de 2011

SEXO E DESTINO - CHICO XAVIER E ANDRÉ LUIZ

CONTINUAÇÃO

Capítulo 2
Repousava Dona Beatriz no leito bem-posto, patenteando enorme
cansaço.
A doença, decerto, consumia-lhe a forma física, desde muito, porquanto aos quarenta e sete anos de idade mostrava o rosto
singularmente engelhado e o corpo leve.
Refletia, ensimesmada, tristonha... Fácil de se lhe ver a preocupação, ante a crise iminente. Idéias a lhe fluírem, vivas e nobres, indicavam que se habituara à certeza da desencarnação
próxima. Notava-se-lhe fixada no pensamento a convicção do
viajante que atingira o término de espinhosa trilha, da qual, por
fim, lhe competia sair.
Conquanto tranqüila, inquietava-se pelos vínculos que a prendiam no mundo. Apesar disso, visualizava as portas do Além, plasmando formosos quadros íntimos, como quem sonha à luz da vigília, e recordava Neves, o pai que perdera na infância, qual se visse prestes a recuperá-lo, em definitivo, tal a extensão do amor que os acolchetava um ao outro.
Observávamos, porém, sem dificuldade, que a alma afetuosa da enferma se dividia mais fortemente, na Terra, entre o esposo e o filho, dos quais se reconhecia em gradativo processo de inevitável
separação.
No aposento acolhedor, que alguns adereços ataviavam, tudo transparecia limpeza, reconforto, assistência, carinho.
Ante o leito, encontramos sisudo enfermeiro desencarnado que Neves abraçou, demonstrando guardá-lo à conta de imensa estima.
E apresentou-nos:
Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 17
– Amaro, temos aqui André Luiz, amigo e médico que, doravante,
nos partilhará os serviços.
Saudamo-nos cordialmente.
Neves inquiriu, atencioso:
– O irmão Félix veio hoje?
– Sim, como sempre.
Informei-me, então, de que o irmão Félix, desde muitos anos, era o superintendente de importante casa socorrista, ligada ao Ministério da Regeneração, em Nosso Lar2. Famoso pela bondade
e paciência, era conhecido como sendo um apóstolo da abnegação
e do bom-senso.
Não dispúnhamos, entretanto, de qualquer tempo para considerações pessoais.
Dona Beatriz experimentava dores agudas e o companheiro mostrou o propósito de aliviá-la, através do passe confortativo, enquanto a senhora se via aparentemente a sós. Em grande prostração física, revelava profunda sensibilidade mediúnica.
Oh! os sublimes pensamentos do leito de dor!... De olhos cerrados, a doente, embora não assinalasse a presença paterna, lembrava a ternura do genitor, que lhe parecia distante e inacessível no tempo. Identificava-se, de novo, com a ingenuidade infantil...
Na acústica da memória, ouvia as canções do lar, voltava, encantada, às horas da meninice... Reconstituindo na imaginação as relíquias do berço, sentia-se no regaço paternal, à maneira da ave de regresso à penugem do ninho!
Dona Beatriz chorava. Lágrimas de enternecimento inexprimível
perolavam-lhe a face. E sem que a boca enunciasse o menor 2 Organizações no Plano dos Espíritos. (Nota do Autor Espiritual) Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 18 movimento, clamava intimamente com toda a alma: “pai, meu pai!...”
Meditai, vós que, no mundo, admitis para os desencarnados a indiferença da cinza! Para lá dos túmulos, amor e saudade muitas vezes se transformam, no vaso do coração, em pranto comburente!
Neves cambaleou, agoniado... Enlacei-o, contudo, a pedir-lhe coragem. A ventania da angústia, porém, sobre o ânimo do companheiro atribulado, perdurou apenas alguns momentos. Refeito, a recompor o semblante que o sofrimento transfigurara, espalmou a destra na fronte da filha e orou, suplicando o amparo da Bondade Divina.
Chispas de luz, quais minúsculas flamas azulíneas, evolavamlhe do tórax, a se projetarem naquele corpo fatigado, revestindo-o de energias calmantes.
Emocionado, observei que Dona Beatriz se acomodava a suave torpor. E antes que pudesse enunciar qualquer impressão, uma jovem, figurando-se nas vinte primaveras da experiência física, entrou cautelosamente no quarto. Renteou conosco, sem percebernos, de leve, e tomou o pulso da enferma, verificando-lhe as condições.
A recém-chegada esboçou o gesto de quem reconhecia tudo em ordem. Encaminhou-se, logo após, na direção de pequenino armário próximo e, munindo-se dos recursos necessários, voltou à cabeceira da dona da casa, aplicando-lhe injeção anestesiante.
Dona Beatriz não mostrou a mínima reação, continuando a
descansar, sem dormir.
O concurso magnético de minutos antes insensibilizara-lhe os centros nervosos.
Perfeitamente tranqüila, a moça, na qual observávamos a posição da enfermeira improvisada, retirou-se para um dos ângulos
Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 19 do aposento, a largar-se em acolhedora poltrona de vime. Em seguida, descerrou um dos segmentos da janela quadripartida, atraindo a corrente de ar fresco que nos bafejou sem alarde.
Respirando à saciedade, a jovem, com grande surpresa para mim, acendeu um cigarro e passou a fumar distraidamente, dando a idéia de quem diligenciava fugir de si mesma.
Neves fitou-a, deitando-lhe significativo olhar em que se mesclavam piedade e revolta e, indicando-a, discreto, informoume:
– Trata-se de Marina, contadora de meu genro, que se dedica ao comércio de imóveis... Agora, a pedido dele, desempenha funções de assistente...
Evidente sarcasmo transparecia-lhe da palavra reticenciosa.
– Imagine! – voltou a dizer – fumar aqui. numa câmara de dor, onde a morte está sendo esperada!...
Contemplei Marina, cujos olhos denotavam recôndita inquietude.
Manifestando ainda alguns laivos de respeitosa estima para com a nobre senhora estirada no leito, soprava, para além da janela, as baforadas cinzentas que lhe escapavam da boca.
Repartindo a própria atenção entre ela e Amaro, o nosso amigo da esfera espiritual, Neves, conquanto mudo e constrangido, parecia querer falar à vontade e desinibir-se.
Tentei, porém, adquirir mais amplo conhecimento da posição.
Aproximei-me reverentemente da jovem, no propósito de sondá-la em silêncio e colher-lhe as vibrações mais intimas; contudo, recuei assustado.
Estranhas formas-pensamentos, retratando-lhe os hábitos e anseios, em contradição com os nossos propósitos de socorrer a Francisco Cândido Xavier - Sexo e Destino - pelo Espírito André Luiz 20 doente, fizeram-me para logo sentir que Marina se achava ali, acontragosto. A sua mente vagueava longe...
Quadros vivos de esfuziante agitação ressumavam-lhe na cabeça...
De olhar parado, escutava, adentro de si própria, a música brejeira da noite festiva, que atravessara na véspera, e experimentava ainda na garganta a impressão do gim que sorvera, abundante.
Apesar de surgir-nos, superficialmente, à guisa de menina crescida, sob o turbilhão de névoa fumarenta, exibia telas mentais complexas, a lhe relampaguearem na aura imprecisa.
Trazido pelas circunstâncias a colaborar na solução de um processo assistencial, sem qualquer intuito menos digno, passei a estudar-lhe o comportamento isolado. A Medicina terrestre, no futuro, para atender com eficácia, ao doente, examinar-lhe-á, com minúcias, a feição espiritual de todas as peças humanas que lhe articulam a equipe.
Respeitoso, iniciei os apontamentos de ampla anamnese psicológica.
Marina apresentou, a princípio, a figura de um homem amadurecido, cunhada por sua própria imaginação, a repetir-se-lhe, muitas vezes, acima da fronte.
Ela e ele, juntos... Percebia-se-lhes, de pronto, a intimidade, adivinhava-se-lhes o romance... Fisicamente, semelhavam pai e filha; entretanto, pelas atitudes sentimentais, não conseguiam disfarçar a estuante paixão um pelo outro. Nos painéis sutis que surgiam e se desfaziam, alternadamente, mostravam-se ambos extasiados, ébrios de prazer, fosse aboletados no automóvel de luxo ou enlaçados na areia morna das praias, conchegados sob a proteção de arvoredo tranqüilo ou sorridentes em tumultuados abrigos de encantamento noturno... Deslumbrantes paisagens de Copacabana ao Leblon desfilavam por admirável fundo pictórico.
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A moça entrefechava as pálpebras para senhorear, com mais segurança, as reminiscências que lhe empolgavam os sentidos, para, logo após, mentalizar, surpreendentemente, outro homem, tão jovem quanto ela mesma, evidenciando-se-nos entregue às cenas de um filme interior, diferente... Formava novo tipo de palco para exibir a lembrança das próprias aventuras, no qual se destacava igualmente ao pé do rapaz, como se estivesse afeiçoada aos mesmos sítios, desfrutando companhias diversas... Ela e ele também juntos, no mesmo carro entrevisto ou na condição de pedestres felizes, saboreando refrescos ou repousando em animados
entendimentos nos jardins públicos, sugerindo o encontro de
crianças enamoradas, a entretecerem aspirações e sonhos..
Naqueles rápidos minutos de fixação espiritual, em que se exteriorizava tal qual era, Marina revelava a personalidade dúplice da mulher dividida entre o carinho de dois homens, jugulada por pensamentos de medo e inquietude, ansiedade e arrependimento.
Neves, que de algum modo me partilhava a inspeção, quebrou a calma reinante, enunciando, abatido:
– Está vendo? Julga que é fácil para mim, pai da doente, suportar
aqui semelhante criatura?
Tratei de consolá-lo e, por solicitação dele próprio, passamos a pequeno salão de leitura, contíguo ao aposento da enferma, a fim de que pudéssemos refletir e conversar

CONTINUA AMANHÃ

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