sábado, 11 de junho de 2011


CONTINUAÇÃO

Chico (ou Emmanuel?) fazia questão de defender as autoridades.
Um telespectador mandou, pelo telefone, outra pergunta incômoda. No livro Cartas de uma Morta, Maria João de Deus tinha descrito Marte como um planeta habitado, mas as sondas americanas desmentiram esta notícia. O espírito da mãe de Chico Xavier teria se enganado?
Após destacar seu respeito pela ciência, Chico garantiu:
- Sabemos que o espaço não está vazio. Mas precisamos esperar o progresso científico na descoberta mais ampla e na definição mais precisa daquilo que chamamos anti matéria. Então, devemos aguardar que a ciência possa interpretar para nós a vida em outras dimensões, outros campos vibratórios.
O clima ficou bem mais leve quando Chico descreveu seu desespero naquele avião trepidante em 1959. A expectativa da morte, seus gritos apavorados, a incapacidade de prever ou não a queda, a aparição de Emmanuel em pleno vôo, irritado com a quase histeria de seu "protegido  ". Aquela história surpreendeu o público. Deu uma dimensão humana, frágil e real àquele homem estranho. Ele também tinha medo de morrer, ele também tinha dúvidas quanto ao próprio futuro. Ele não se anunciava como um vidente, um profeta, um super homem bem relacionado com Deus. Com bom humor, Chico conquistou o público.
Após duas horas e 45 minutos de inquérito, Almir Guimarães pediu ao entrevistado para colocar no papel  "uma mensagem de seus guias ". Chico respondeu com um "vamos tentar ", fechou os olhos, levou a mão esquerda à testa. O auditório ficou em silêncio absoluto, O único ruído vinha do lápis sobre a página em branco, em velocidade impressionante.
De repente, Chico parou, ajeitou os óculos, tomou fôlego e, com a voz baixa, começou a ler o texto. Era um soneto assinado pelo ex poeta, ex conferencista, ex jornalista, ex advogado, ex integrante da Academia Paulista de Letras e ex delegado auxiliar de polícia do Rio de Janeiro Cyro Costa. Um ilustre desconhecido naquele início da década de 70. Tinha morrido em 1937, após publicar dois livros.
Ninguém esperava por aquele visitante do outro mundo. Muitos apostavam num fecho de ouro com Augusto dos Anjos ou Castro Alves, só para impressionar. Mais uma vez, Chico surpreendeu. O poema, "Segundo Milênio ", resumia o clima de perplexidade geral naquele início de década atribulado:
A civilização atônita, insegura
Lembra um tesouro ao mar que a treva desfigura,
Vagando aos turbilhões de maré desvairada.
Antes de se retirar, Chico pediu licença para homenagear as mães e agradecer a todos com a oração que Maria João de Deus rezava a seu lado, "em espírito ", quando ele tinha cinco anos. As lágrimas rolaram em seu rosto enquanto ele declamava o pai nosso. O público aplaudiu de pé.
O Pinga-Fogo superou todas as expectativas. O programa foi reprisado na íntegra, a pedidos, três vezes nas semanas seguintes, sempre com audiência superior a 25% (uma enormi-dade se comparada com a média do programa naquele horário ingrato: 2%).
A entrevista e o poema foram traduzidos para o esperanto e publicados pela revista japonesa Omoto, que circulava em setenta países. Chico Xavier, o mesmo  "investigado " por David Nasser e Jean Manzon, virou colaborador fixo da revista O Cruzeiro, que passou a publicar em uma página semanal, para quase 400 mil leitores, "mensagens psicografadas " de Francisco Cândido Xavier. Em novembro, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo abriu espaço para seis aulas sobre o espiritismo. A convite dos padres Mauro Batista e Marcos Masetto, o professor espírita Herculano Pires falou para auditórios lotados com quinhentos alunos.
O programa foi um marco para o espiritismo e para Chico Xavier. Muitos espíritas enrustidos, ou católicos não praticantes, assumiram a religião. Céticos passaram a acreditar em vida depois da morte.
Os amigos mais próximos e os observadores mais atentos, acostumados à figura de Chico, tiveram um motivo bem menos metafísico para ficarem impressionados.
Eles identificaram um corpo estranho sobre a cabeça do entrevistado. Nada de outro mundo. Ao contrário. Uma peruca discreta, com poucos fios, mudou sua aparência. Chico já não era mais o senhor calvo do ano anterior.
Aquela alteração deixou muitos espíritas em estado de choque. Como alguém tão humilde capaz de se render a tanta vaidade?
Na introdução do livro Pinga-Fogo, lançado naquele ano pela Edicel, o autor do prefácio não se conteve ao descrever a aparição de Chico Xavier: "Haviam lhe posto uma peruca (talvez para atrapalhar), que juntamente com os seus óculos pretos dava-lhe um ar estranho. Parecia outro ". Na edição seguinte, a constatação  "haviam lhe posto uma peruca " veio acompanhada de um asterisco. A observação, no rodapé, era sucinta : "Chico Xavier usa peruca ".
Mesmo os amigos mais íntimos demoraram a aceitar a idéia.
Chico chegou a recorrer a uma explicação médica para justificar a novidade. Da mesma forma como atribuiu à labirintite a causa de sua mudança para Uberaba, ele responsabilizou a sinusite pela necessidade da  "prótese capilar ". O frio sobre sua cabeça intensificava sintomas da doença e chegava a afetar seu olho enfermo. Durante algum tempo, ele tentou usar boina, mas, em meio à confusão na Comunhão Espírita Cristã, muita gente arrancava a proteção de sua cabeça, até mesmo na ilusão de levar um talismã para casa. Chico ia além em seu discurso médico:
- No meu caso, a calvície é uma enfermidade catalogada em qualquer dicionário. Chama-se alopécia.
Em seguida, admitiria a tentativa de um implante, na época realizado com técnicas ainda mais duvidosas do que as atuais. Sua cabeça trazia mais feridas do que novos fios e ele não poderia exibi-la por aí. Outro motivo, mais sobrenatural, também veio à tona. A "comunicação mediúnic "" partia, muitas vezes, de seu cérebro. E Chico sofria quando alguém colocava as mãos em sua careca, sempre sensível. Os fiéis mais entusiasmados costumavam tocar nele sem maiores constrangimentos.
Chico demorou um pouco a admitir outro motivo, a vaidade pura e simples:
- Devemos cuidar de nossa aparência física, como cuidamos da parte espiritual. Não temos direito de chocar os outros e enfear o mundo com nossas deficiências.
No dia 12 de dezembro, Chico Xavier voltou ao auditório da TV Tupi para um bis do programa de maior sucesso naquele ano: o Pinga-Fogo espírita. Vestia um terno alinhado e aparentava calma, apesar da movimentação quase histérica em torno dele. O salão, com capacidade para quinhentas, abrigava oitocentas pessoas. À tarde, o superintendente da TV Tupi, Orlando Negrão, lutava para conseguir um convite para Zilda Natel, mulher do governador paulista, Laudo Natel.
A entrevista, dessa vez, não seria transmitida apenas para São Paulo. Seria veiculada por um pool formado por quatro emissoras em rede nacional. Na última hora, diante das reportagens extensas na imprensa, catorze outras TVs encomendaram videoteipes. Antes mesmo do início do programa, mais de cem perguntas já haviam chegado à Tupi por escrito ou por telefone. Outras duzentas foram enviadas por três telefones que não pararam de tocar.
O próprio Chico Xavier declarou-se surpreso com tanto interesse no início da entrevista:
- Sinceramente, devemos confessar que estamos aqui numa posição imerecida. Emprestou-se tamanha solenidade a este programa que, sinceramente, nos surpreendemos sobremaneira.
A entrevista estendeu-se por cinco horas. Chico defendeu a cirurgia plástica como uma concessão da Providência Divina, "para que venhamos a valorizar cada vez mais o veículo físico ", fez declarações de respeito a umbanda, "apesar de não estar vinculada aos princípios codificados por Karde ", defendeu a reencarnação. O caso bem humorado da noite ficou por conta do pai dele, João Cândido. Antes de morrer, o vendedor de bilhetes lotéricos prometeu ao filho:
- Quando eu for embora, pode acreditar, vai parar a roda da fortuna para você no Natal.
Após a morte do pai, Chico passou a jogar na loteria todo final de ano. Jamais ganhou.
O público se divertiu.
Mas a entrevista teve maus momentos.
No país do AI-5 e da tortura, Chico Xavier fez um discurso capaz de emocionar o general Médici, então presidente do Brasil:
- Precisamos honorificar a posição daqueles que nos governam e que vigiam os nossos destinos. Devemos pedir para que tenhamos a custódia das Forças Armadas até que possamos encontrar um caminho em que elas continuem nos auxiliando como sempre para que não descambemos para qualquer desfiladeiro de desordem. A oração e vigilância, preconizadas por Jesus, se estampam com clareza em nosso governo atual...
O segundo Pinga-Fogo do ano terminou com um poema intitulado "Brasil ". Chico colocou no papel, com os olhos fechados, versos como:
"Dos sonhos de Tiradentes/
Que se alteiam sempre mais/
Fizeste apóstolos, gênios/
Estadistas, generais ".
A assinatura: Castro Alves.
A revista Veja decifrou o discurso militarista de Chico Xavier como uma estratégia. Com os elogios generalescos, ele se livraria do risco de sofrer censura, como havia acontecido com o umbandista carioca Seu Sete da Lira, atração dos programas Sílvio Santos, Flávio Cavalcanti e Chacrinha naquele ano.
Se foi mesmo uma tática, ela funcionou. A Escola Superior de Guerra convidou Chico a dar uma palestra a seus alunos. Ele aceitou o convite. No final da conferência, os cadetes se perfilaram e, em fila, cantaram para ele o hino de sua escola.
O jornal Última Hora criticou a performance do entrevistado:
- Sorriso por sorriso, o de Sílvio Santos é mais cativante. Simpatia por simpatia, a de Hebe Camargo é mais convincente. O gesto de ajustar os óculos tem mais charme executado pelas mãos de Flávio Cavalcanti. A voz afetada de Norminha, personagem de Jô Soares, é mais espontânea.

CONTINUA AMANHÃ

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