sexta-feira, 10 de junho de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - A VIDA DESAPROPRIADA - PARTE 1

A VIDA DESAPROPRIADA

Em 1969, Chico Xavier pingou, finalmente, o ponto final em seu centésimo livro: Poetas Redivivos. Sentiu vontade de correr pelas ruas, de gritar, de festejar. Tinha cumprido o acordo assumido com Emmanuel dez anos antes. Aos 59 anos, estava pronto para diminuir o ritmo. Chegou até a avisar o amigo Ranieri:
- Já escrevi muito. Livros, livros, livros. Agora é preciso o povo executar. A mensagem já está dada.
O anúncio foi precipitado. Chico ouviu uma contra ordem de seu guia e ficou perplexo:
- Estou na obrigação de dizer a você que os mentores da Vida Superior, que nos orientam, expediram uma instrução: ela determina que sua atual reencarnação seja desapropriada, em benefício da divulgação dos princípios espírita cristãos. Sua existência, do ponto de vista físico, fica à disposição das entidades espirituais que possam colaborar na execução das mensagens e livros, enquanto seu corpo se mostre apto para nossas atividades.
Chico não se conformou:
- Devo trabalhar na recepção de mensagens e livros até o fim da minha vida atual?
- Sim, não temos outra alternativa.
O autor dos cem livros insistiu:
- E se eu não quiser? A doutrina espírita ensina que somos portadores do livre arbítrio para decidir sobre os nossos próprios caminhos.
Emmanuel sorriu e deu o veredito:
- A instrução a que me refiro é semelhante a um decreto de desapropriação, quando lançado por autoridade na Terra. Se você recusar o serviço a que me reporto, os orientadores dessa obra de nos dedicarmos ao cristianismo redivivo terão autoridade bastante para retirar você de seu atual corpo físico.
Assunto encerrado.
Chico manteve a conversa em segredo. Os espíritas estavam em festa mais uma vez. Comemoraram o centésimo livro de Chico como o milésimo gol de Pelé. O número redondo era um recorde. Chico era saudado como o único, entre os escritores vivos, com cem obras publicadas no país. Vendia dez vezes mais que Carlos Drummond de Andrade.
Só o best seller Jorge Amado era páreo para ele. Entre os autores brasileiros de sucesso, era o mais eclético. Sua obra incluía reportagens, poemas, crônicas, títulos infantis, contos e romances históricos.
Num dos jantares oferecidos a ele, o "desapropriado " dispensou os elogios e apelou para mais um de seus trocadilhos:
- Este é meu livro número cem, mas com  "s  "
Ele insistia: todos os livros eram dos espíritos. E abria mão, em cartório, dos direitos autorais.
Os observadores espíritas mais atentos faziam as contas e analisavam a lógica matemática da obra de Chico Xavier. Ele tinha colocado no papel os primeiros quarenta títulos a uma velocidade de dois livros por ano. Os trinta seguintes chegaram às livrarias no pique de três publicações anuais. Depois, já aposentado, a média subiu para quatro. Para os mais entusiasmados, não restava qualquer dúvida: a obra obedecia a um planejamento minucioso do outro mundo. Nos anos 70, sem nenhum parceiro, Chico escreveria oito livros por ano.
Na noite de 28 de julho de 1971, Chico Xavier entrou na arena: o auditório da TV Tupi de São Paulo. Quase quinhentas pessoas cercavam o palco. Calvo, com a cabeça grande demais para o corpo franzino, Chico cumprimentou a multidão e, com um sorriso tímido, dirigiu-se sozinho ao centro do tablado, em direção à mesa reservada para ele. Após ajeitar-se na poltrona, ajustou os óculos, engoliu em seco. O responsável por 107 livros ditados por quase quinhentos defuntos estava prestes a se submeter a uma sabatina via satélite. E, o melhor (ou pior), ao vivo.
Chico Xavier entrou na roda. Uma roda viva chamada Pinga-Fogo, o programa de entrevistas mais demolidor da época. As perguntas viriam de todos os lados: da platéia, dos telespectadores, de uma bancada formada por cinco entrevistadores. Além dos três jornalistas da equipe da TV Tupi Saulo Gomes, Reali Júnior e Helle Alves -, dois convidados cuidariam da  "inquisição  ": o católico João de Scantimburgo e o espírita Herculano Pires. Como mediador, o jornalista Almir Guimarães.
O tribunal estava montado. Réu, advogados de defesa e acusação, juiz, todos a postos. Às 23h30, Chico deu o seu boa noite. Com fala pausada, baixa, monocórdia, disse a primeira das muitas frases estranhas da noite:
- Estou confiante no espírito de Emmanuel, que prometeu assistir-nos pessoalmente.
Estava tenso. Quantas pessoas estariam sintonizadas naquele canal? Talvez entrasse em pânico se soubesse a resposta: 75% dos televisores paulistas ficaram ligados no Pinga Fogo até o fim, às 3h da manhã. Pobres, milionários, padres, céticos, políticos, psiquiatras dormiram de madrugada naquela terça-feira para acompanhar as opiniões extravagantes de Chico Xavier sobre reencarnação, sexo, catolicismo, fornos crematórios e bebês de proveta.
Nada menos que duzentos telespectadores telefonaram ao longo das quase três horas de entrevista.
João de Scantimburgo ajudou a espantar o sono do público em duelos como este:
- Os que não crêem nos seus dotes defendem a tese de que o senhor registra no papel, por meio de escrita automática ou inconsciente, reminiscências de leituras. Não terá o senhor repetido de Augusto dos Anjos, por exemplo, os versos que leu e reteve na memória?
Sem gaguejar, Chico Xavier deu a resposta de sempre:
- Se eu disser que estes livros pertencem a mim, estarei cometendo uma fraude pela qual vou responder de maneira muito grave depois da partida deste mundo.
Após resumir seu currículo escolar limitado ao quarto ano primário, ele fez questão de defender a própria ignorância. Não tinha a menor idéia do que escrevia enquanto passava para o papel grande parte dos livros psicografados.
João de Scantimburgo não se convencia.
O senhor é um homem que tem grande fluência ao falar.
O senhor constrói com perfeição a frase, o senhor tem lógica na exposição da sua doutrina. Logo, o senhor é um autodidata, que se compenetrou da doutrina que esposou e a estudou profundamente e passou a exercer o seu trabalho expondo essa doutrina. Chico apelou para a presença de Emmanuel:
- Qualquer estrutura fraseológica mais feliz de que eu possa ser portador se deve à influência de Emmanuel, à presença dele junto a mim, compreendendo a responsabilidade de um programa como este.
De vez em quando, ao longo da entrevista, ele diria:
- Emmanuel pede para mencionar... Emmanuel pede para lembrar... Emmanuel, que está presente, diz...
Mais tarde, Chico Xavier descreveu aos amigos mais íntimos os bastidores invisíveis daquela saga televisiva. Emmanuel teria se fundido a ele em simbiose.
Semiconsciente o tempo inteiro, Chico teria repetido, como um amplificador, as respostas ditadas por seu guia. Só soube mesmo do teor da entrevista quando assistiu à reprise do programa em Uberaba.
Scantimburgo duvidava de fenômenos como este. E lançava perguntas escorregadias. Por que filósofos como Platão, Aristóteles e Kant não enviavam do além obras para os médiuns? Seria difícil demais  "traduzir " as idéias deles? Chico (ou Emmanuel) respondeu com uma hipótese incômoda:
- Com todo o respeito ao senhor, eu me permitiria perguntar se eles também não seriam médiuns.
Scantimburgo perdeu a paciência:
- Este programa é de perguntas e não de debate.
Chico concordou, tranqüilo, para evitar atritos. Exibiu seu talento para a diplomacia várias vezes. Como ao declarar um imenso respeito pela Igreja Católica, " em cujo seio formei a minha fé ". Ou ao evitar mencionar o nome dos países que estavam legalizando o aborto, para não ser injusto com "povos que amamos e respeitamos muito  ". Como sempre, ele mediu cada palavra e pediu perdão ao usar a expressão  "assassinando " crianças  quando criticou o aborto.
Naquela noitada, o espírita falou menos sobre a doutrina e mais sobre temas polêmicos na época. Muito mais liberal do que o papa e os bispos, ele apontou nos bebês de proveta a possibilidade de diminuir o sofrimento da mulher no parto e os riscos de vida dos fetos. Viu nas então revolucionárias e controvertidas pílulas anticoncepcionais a chance de mulheres e homens ficarem livres do  "delito do aborto  "e ainda defendeu o homossexualismo e a bissexualidade como "condições da alma humana  " que não deveriam ser encaradas como "fenômenos espantosos, atacáveis pelo ridículo da humanidade  ".
Fazia questão de destacar, a cada resposta mais elaborada, a presença de Emmanuel. Telespectadores começaram a se acostumar com a idéia. O guia de Chico analisou até a cremação, com palavreado um tanto rebuscado:
- Ela é legítima para todos aqueles que a desejam, desde que haja um período de pelo menos 72 horas de expectação para a ocorrência em qualquer forno crematório, o que poderá se verificar com o depósito de despojos humanos em ambiente frio...
Ou seja: o corpo deveria ser conservado em baixas temperaturas antes de ser lançado às labaredas.
O jornalista Reali Júnior cobrou uma posição mais ativa do espiritismo na luta por uma distribuição de renda mais justa no país. Dom Hélder Câmara projetava-se na batalha contra os problemas sociais e enfrentava com coragem a resistência de militares e conservadores. Chico limitava-se a promover campanhas beneficentes, atribuía o sofrimento de cada um à necessidade de  "resgatar dívidas passadas  ", distribuía sopas, roupas, remédios e só. Por que ele, como líder religioso, não cobrava uma política mais eficiente do governo em vez de apenas acenar com paliativos? Os espíritas seriam adeptos do conformismo? Com calma, Chico defendeu a doutrina:
- O espiritismo nos pede paciência para esperar os processos da evolução e as ações dos homens dignos que presidem os governos.

CONTINUA AMANHÃ

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