segunda-feira, 6 de junho de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - OS MORTOS ESTÃO VIVOS - PARTE 2


CONTINUAÇÃO

Numa tarde, o Dr. Elias Barbosa conheceu um pouco da  "terapia de casais " defendida por Chico Xavier. Ele almoçou com o médium e seu companheiro Waldo num restaurante em São Paulo e, ao pedir a conta, teve uma surpresa. Uma mulher, na mesa ao lado, já tinha pago a despesa. Ao lado do marido, ela se aproximou com um buquê e o entregou a Chico, comovida. Mais tarde, ele explicou. Aquela senhora tinha chegado atônita à Comunhão Espírita. Estava em crise com o marido, disposta a se separar. Chico se limitou a aconselhar:
- Trate seu marido como um filho.
Deu certo. Édipo venceu. O casamento também.
Em 1962, Chico Xavier já mobilizava milhões de espíritas e católicos no Brasil.
Para formar livros e leitores, o escrevente aposentado se impunha um ritmo estressante.
Acordava todos os dias às seis horas e, antes mesmo de tomar café, regava a horta. Às sextas e sábados, dias de sessões públicas, deixava o sono de lado para cumprir uma programação quase insuportável.
Chico costumava chegar ao centro meia hora antes da abertura dos portões, marcada para as 20h. Quando a fila começava a andar, ele já estava sentado à cabeceira da mesa folheando o Evangelho Segundo o Espiritismo ou o Livro dos Espíritos à procura de um bom trecho para ser lido e comentado naquela noite. Após escolher os oradores entre os companheiros espíritas, ele se refugiava num pequeno quarto destinado ao receituário. Os comentaristas se dedicavam a discursos quase intermináveis sobre a importância da paciência, do perdão e da caridade, e Chico passava para o papel as dicas do Dr. Bezerra. Muitas vezes, atendia a trezentas pessoas por noite. Por volta das 21h as receitas começavam a sair por uma abertura na porta do cômodo onde ele trabalhava.
Em noites de casa cheia, Chico ficava até meia noite confinado. Quando voltava para a mesa, os espectadores só faltavam aplaudir, não só por sua presença, mas pelo fim dos comentários evangélicos. A presidente do centro pedia silêncio, meditação, prece. Chico fechava os olhos, segurava o lápis e as frases se espalhavam pelo papel. Waldo em geral o acompanhava no dueto do além. Às vezes, quando um parava, o outro começava, e os dois produziam textos complementares assinados pelo mesmo  "autor  ".
O espetáculo atingia o clímax quando Chico preenchia as páginas em branco com as esperadas "mensagens particulares  ". Nessas longas noites mais produtivas o ritual costumava se prolongar até as 3h. Era a hora de a multidão se aglomerar em volta de Chico. Risonho, de pé, com uma paciência indestrutível, ele atendia a centenas de pessoas, autografava livros, contava casos, ouvia histórias, ria, orientava. Era rara a noite em que não precisava recorrer à velha frase:
- O telefone só toca de lá pra cá.
Mães levavam os filhos para ele tocar, outras se limitavam a chorar em silêncio, alguns desmaiavam. As cenas de idolatria se seguiam madrugada adentro.
Um dos visitantes mais assíduos era um rapaz chamado Jorge. Sempre descalço, enfiado em roupas remendadas e fedorentas, ele vinha da favela e, ao ver Chico Xavier, abria um sorriso dolorido. Carregava no lábio inferior uma ferida crônica, que se abria e sangrava a cada riso. Era sempre assim. Além do machucado, sua boca trazia dentes apodrecidos. O hálito beirava o insuportável. Quase todos no centro, e em todo canto, fugiam dele. Chico o recebia com um abraço demorado e a pergunta de praxe:
- Jorge, como vai a vida?
- Ah, tio Chico, a vida é uma beleza.
A conversa às vezes se estendia por cinco, dez, quinze minutos. A fila parava, gente suspirava, os mais impacientes olhavam para os lados, se coçavam, bufavam, rezavam.
Jorge falava da briga dos gatos, da goteira sobre a cama, do ninho no telhado. Só calava após muita falação.
Quando todos já saboreavam o fim do suplício, Chico anunciava:
- Agora, o nosso Jorge vai declamar alguns versos.
Ele recitava algumas rimas e Chico cobrava, então, o grand finale:
- Na nossa despedida, declame o poema de que mais gosto.
- Qual, tio Chico?
- Aquele da moça.
Jorge tomava fôlego, olhava para os lados para conferir a atenção do público, e enchia a boca:
Menina, penteia o cabelo,
joga as tranças pra cacunda.
Queira Deus que não te leve
de domingo pra segunda.
O riso era geral. A sensação de alívio estimulava o senso de humor. Jorge se aproximava de Chico, recebia dele alguns cruzeiros e os guardava na capanga.
Em seguida, se jogava sobre o anfitrião, dizia as últimas palavras a um palmo de seu nariz, beijava sua mão. Chico retribuía. Não só beijava a mão de Jorge como sapecava um beijo em seu rosto. Para encerrar, o rapaz deixava nas bochechas de Chico as manchas de sangue de seu lábio.
Os amigos ficavam impressionados. Nunca, em vários anos, Chico esboçou um recuo instintivo. Nunca levou o lenço ao rosto após a saída de Jorge.
A romaria só terminava por volta das 4h, quando Chico convidava os mais resistentes a tomar chá e café, acompanhados de pão e rosca, na cozinha. Era a hora da conversa descontraída. Muitas e muitas vezes, já eram 5h quando o anfitrião se despedia dos últimos visitantes.
Em janeiro de 1963, Chico Xavier colocou o lápis no papel e as páginas em branco se encheram de rimas assinadas por um de seus compositores preferidos, o sambista Noel Rosa. Eram sambas de exaltação ao Rio e a Deus.
O samba não é pecado
se nasce do coração
Jesus nasceu festejado
no meio de uma canção.
Meu Rio belo e risonho,
canto ainda a serenata
em tuas praias de sonhos
em tuas noites de prata
Atraídos por surpresas como essa, os visitantes engrossavam a fila em frente à Comunhão Espírita Cristã. A confusão se alastrava pelo chão de terra da rua Eurípedes Barsanulfo. Centenas de carros de todos os estados procuravam uma boa vaga entre os postes de madeira e as cercas de arame farpado. Os guardas apitavam e o choro e os gritos das crianças se misturavam aos resmungos e gemidos de velhos e doentes e ao coro dos vendedores de balas, pipocas, picolé. As ruas em volta do centro ficavam estreitas para tanta gente as sextas e sábados.
O centro acompanhava o movimento e crescia. O galpão já podia abrigar entre oitocentas e mil pessoas.
Na noite de 28 de junho de 1963, Chico deixou mais uma mãe exultante. A felizarda foi Júlia Gomes de Oliveira, paulista de Barretos. Um texto assinado por seu filho, Wilson de Oliveira, caiu do céu. O morto mandava notícias um mês após ter se afogado numa represa.
Júlia sofria a dor da perda e da culpa. Foi ela quem convidou o filho para o passeio.
A carta do além tirava os dois pesos dos ombros da mãe e terminava com uma assinatura quase idêntica à exibida na carteira de identidade do morto. Júlia, comovida, exibiu o documento e a mensagem a quem quisesse ver e comparar. Na semana seguinte, começou a atender um pedido vindo do outro mundo:
- Ampare as crianças sofredoras.
O contato com a multidão era quebrado pela solidão de levar ao papel mais poemas do além. Desta vez, os versos não renderiam uma edição reforçada do Parnaso de Além Túmulo.
O dueto com Waldo Vieira iria gerar a Antologia dos Imortais. Ainda faltavam 27 livros para chegar ao título número cem. Chico assinava os capítulos ímpares, Waldo, os pares. Os poemas eram evangelicamente corretos. Quase todos os poetas "representados " se dedicavam a confirmar a vida depois da morte, a criar rimas em torno da reencarnação e a divulgar, assim, o espiritismo. Entre os autores, apareceu Zeferino Brasil, aquele jornalista gaúcho que defendeu a autenticidade dos poemas escritos por Chico em seu livro de estréia.
Augusto dos Anjos também deu o ar de sua graça. Nem parecia ter se incomodado com as censuras espirituais na sexta edição do Parnaso de Além Túmulo. Fiel à cartilha espírita, ele descreveu seu retorno a Terra, mas não resistiu a criticar o caos deste mundo, a exalação de todos os detritos e os túmulos de esterco.
Em  "Morte Húmida ", ele narrava a agonia de um doente vítima de úlcera:
A morte chega brusca, horrenda e terna
Corre na goela hirta fino gume.
E, quando tudo parecia perdido, concluía feliz, espírita.
A alma ditosa nasceu noutro nível
É o parto novo...
E a vida imperecível
Desabrocha qual lírio sobre o estrume.
Em fevereiro de 1964, as vésperas do golpe militar, Chico não resistiu e, seduzido pelas materializações promovidas pela médium Otília Diogo, de Campinas, se animou a exibir os poderes dela a um repórter e a um fotógrafo da revista O Cruzeiro.
Tomou a decisão após participar de uma sessão privativa comandada pela moça.
Naquele primeiro show para Chico Xavier, ela ficou amarrada a uma cadeira, cercada por grades. De repente, luzes pipocaram pela sala escura e um cheiro forte de perfume se espalhou pela casa. Otília gemia enquanto o ectoplasma se desprendia de seu corpo e ganhava a forma de uma criança que, fora das grades, cantava. Chico assinou embaixo: os fenômenos eram autênticos. Otília Diogo dava mesmo vida a outras criaturas: uma das aparições mais assíduas era de uma freira, a "irmã Josefa ".

CONTINUA AMANHÃ

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