quinta-feira, 2 de junho de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - A NOVA ATRAÇÃO DE UBERABA - PARTE 1

A NOVA ATRAÇÃO DE UBERABA

Chico Xavier se refugiou no meio do mato a oito quilômetros do centro de Uberaba. Sua casa, que dividia com Waldo Vieira, era um barraco. Quarto, sala, cozinha, banheiro, chão de cimento, paredes sem pintura. Nenhum ônibus passava por ali.
Quem quisesse chegar até o porta voz dos mortos no Brasil precisava atravessar o matagal, driblar bois e vacas, pular cercas de arame farpado. Sem telefone, com os parentes a seiscentos quilômetros de distância, livre de Rômulo Joviano e do padre Sinfrônio, às vésperas da aposentadoria, Chico experimentava a privacidade e tomava fôlego para recomeçar. Precisava chegar ao centésimo livro. Agora, pelo menos, já tinha um parceiro.
No dia seguinte à sua chegada, ele abriu a porta aos primeiros visitantes. Sete amigos participaram da primeira sessão espírita comandada por Chico Xavier no novo endereço. Na noite de 5 de janeiro de 1959, todos se sentaram em volta da mesa, na cozinha. Os bancos eram tábuas equilibradas sobre pilhas de tijolos. Dois tamboretes velhos compunham a decoração. O anfitrião colocou no papel, após a leitura do Evangelho, um recado assinado por Emmanuel:
- "Se tiveres amor, relevarás toda ofensa com que martirizem as horas..."
A notícia da chegada de Chico Xavier começou a se espalhar pela cidade. E chegou até os ouvidos de uma católica fervorosa chamada Maria Olina. Aos quarenta anos, analfabeta, ela ia à missa todo santo dia, de manhã e de tarde, e emprestava seus ombros para a imagem de Santa Teresinha nas procissões. Um de seus orgulhos era ter ajudado na construção da igreja dos capuchinhos, dois anos antes. Muitos tijolos foram comprados graças aos leitões e galinhas criados por ela e leiloados nas quermesses.
Sua vida estava prestes a mudar.
Uma vizinha, Joventina Lourenço, entrou em sua casa com um brilho estranho nos olhos e uma idéia pouco católica na cabeça. Queria companhia para visitar o tal espírita de Pedro Leopoldo. Ele era um fenômeno, falava com os mortos, curava doentes, adivinhava pensamentos. Maria Olina, curiosa, fez o sinal da cruz e cedeu à tentação do desconhecido. Na mesma tarde, ela e a amiga pularam as cercas e correram das vacas para chegar à ponte para o  "outro mundo ".
Chico Xavier recebeu as visitantes com abraços, sorrisos, café e bom humor.
Livre, às vésperas de completar cinqüenta anos, ele se revelava um contador de "causos " inspirado. Eça de Queiroz aprovaria. Olina, no início desconfiada, terminou a noitada às quatro horas da manhã, exausta de tanto rir. As histórias se sucediam e as gargalhadas também. Waldo Vieira, mais sério, preferia o silêncio e certa distância.
Seu companheiro, de pé na cozinha miúda, roubava a cena e ressuscitava a juventude na cidade natal. Chegava até a cantar para imitar uma vizinha de trinta anos antes, a Raimunda, apelidada de Buduca. A moça enchia o peito e soltava a voz no embalo de marchas de carnaval. Numa tarde, Chico sentiu dificuldades para pôr no papel os textos do além e, com muito cuidado, pediu à cantora que baixasse um pouco o volume porque precisava enviar para o Rio, com urgência, algumas orientações.
Buduca, um tanto envergonhada, pediu desculpas e concordou. Mas não resistiu. Quando Chico entrou no quarto, ouviu a nova letra inventada pela vizinha para um hit carnavalesco da época.
Era só o que faltava
Você me fazer calar
Para ouvir os seus demônios
Pra poder se concentrar.
O show continuava, O repertório parecia interminável. Chico Xavier contava, às gargalhadas, a história de um homem fanático pelo espiritismo. Ele cultivava um hábito bastante comum entre os espíritas: o de buscar respostas para qualquer problema em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Ele fechava os olhos, abria o livro ao acaso e, com a ajuda do "outro mundo ", esperava encontrar na página aberta uma solução para suas dúvidas. Um dia, o devoto estava em sua chácara, de pernas para o ar, refestelado numa rede, quando o céu escureceu. Uma tempestade varreu o sítio e um raio atingiu em cheio um gato a poucos metros dele. Ainda trêmulo, o sobrevivente correu para O Evangelho Segundo o Espiritismo e, com o coração aos pulos, buscou a mensagem. Encontrou:  "Se fosse um homem de bem teria morrido..."
Chico ria das superstições alheias e também falava sério. De história em história, ele envolvia as visitas, dava o seu recado. Olina estava quase conquistada. Mas ainda achava estranha a idéia de os mortos voltarem a Terra. Quando sua amiga se levantou para rezar, beber a água fluidificada e receber os passes, ela continuou sentada. Waldo leu o Evangelho, pediu licença e foi dormir. Chico ficou na cozinha com os olhos e boca bem abertos. Ainda tinha muita história para contar. Como a da lagarta, que sempre dizia:
- Esqueçam esta ilusão de que nós podemos voar. Isto é tudo mentira. Um dia, ela virou borboleta e saiu por aí batendo asas.
- E os pássaros, coitados? Eram as criaturas mais infelizes do mundo quando Deus criou a Terra. Moravam no chão e bastava uma chuva para suas asas ficarem ensopadas e eles, pesados, serem devorados por outros animais.
- A situação era insustentável. Eles se organizaram, formaram uma comissão, estufaram as penas e decidiram pedir socorro ao Todo poderoso. Deus foi pego de surpresa:
- Vocês foram as únicas criaturas às quais dei o céu. Por que não usam o dispositivo esculpido em seus corpos?
- Que dispositivo? - perguntou um dos defensores da categoria.
- As asas.
De imediato, Deus ensinou os interlocutores a abrir o par de asas, tão "incoveniente " nas chuvas, e eles saíram voando felizes da vida.
Olina se sentiu nas nuvens. Perdeu a noção do tempo, se esqueceu dos filhos, nem se lembrou da missa na manhã seguinte. Eram 4h30 quando o padeiro estacionou sua Kombi velha em frente à casa de Chico e buzinou. O anfitrião pediu carona para suas novas amigas. Misturadas aos pães, Maria Olina e Joventina fizeram a viagem de volta, O carro parava de casa em casa e elas nem resmungavam. A noitada valeu a pena. Só as 7h30, suja de farinha de trigo, Olina entrou em seu barracão. O marido já tinha ido para o curtume onde trabalhava, os filhos já estavam no colégio. Seus olhos exibiam um brilho estranho enquanto ela lavava a louça do café da manhã.
Minha vida era ficar namorando o Chico - ainda se lembraria, 34 anos depois, com a voz embargada.
Aquela foi a primeira de uma série de noites inusitadas. Às segundas, quartas e sextas, Maria Olina e sua amiga pulavam as cercas até a casa de Chico Xavier e Waldo Vieira. Às terças, quintas, sábados e domingos, ela engolia hóstias e se confessava na igreja. A vida dupla duraria pouco tempo. Logo, o dia a dia da beata viraria de cabeça para baixo.
Às terças e quintas-feiras, Chico e Waldo calavam a boca, fechavam as portas de casa e se dedicavam a um novo livro assinado por André Luiz, o primeiro da nova série de quarenta necessários para atingir o centésimo título. Os capítulos ímpares eram escritos por Waldo, os pares, por Chico. O texto tentava traduzir, de forma científica, os "mecanismos da mediunidade ".
A primeira frase dava o tom:   A Terra é um magneto de gigantescas proporções, constituída de forças atômicas condicionadas e cercado por essas mesmas forças em combinações multiformes.
Olina se benzeria se visse Chico espalhar frases como essa no papel.
O presidente da Federação Espírita Brasileira, Wantuil de Freitas, ficou preocupado com aquele palavrório todo. Era científico demais. Esperava um livro mais acessível do autor de Nosso Lar. Eles tinham que se aproximar da população e não se afastar dela. Chico também estranhava aqueles parágrafos. Nunca conseguiria entender direito Evolução em Dois Mundos e Mecanismos da Mediunidade. Vinte anos depois, algumas das idéias mirabolantes assinadas por André Luiz em Uberaba seriam confirmadas por físicos estrangeiros. Uma delas "a matéria é luz coagulada " seria respaldada por dois cientistas americanos, Jack Sarfatti e David Bohm, em um livro intitulado Space Time and Beyond. Eles garantiriam: "A matéria é luz capturada gravitacionalmente ".
Chico Xavier trabalhava e os boatos proliferavam à distância. Alguns espíritas espalharam a notícia de que o novo morador de Uberaba iria se internar num sanatório espírita. Ele estaria esgotado. O companheiro de Waldo Vieira tratou de desmentir os rumores em carta a Wantuil: "Se isso acontecer, podes estar certo de que estarei me sentindo extremamente mal de saúde e com perspectiva de desencarnação ".
Chico tinha medo. Acreditava que pessoas tinham sido pagas para atribuir a ele falsas declarações contra o espiritismo no momento de sua morte. Seu medo de cair numa armadilha preparada por adversários era tanto que ele já tinha pedido a Waldo e a outros companheiros para ser internado em instituição espírita de confiança se adoecesse. Precisava ficar a salvo de um complô silencioso armado contra ele...
No dia 18 de abril de 1959, Chico e Waldo Vieira inauguravam, ao lado da casa deles, a Comunhão Espírita Cristã. Nenhum deles assumiu a presidência do centro. Precisavam escrever. Dalva Rodrigues Borges, uma espírita de Uberaba, assumiu o comando. A programação do novo centro era intensa: reuniões públicas às segundas, sextas e sábados, sessões de desobsessão privadas às quartas-feiras, sopas para os pobres todas as tardes, peregrinações pelos bairros da periferia aos sábados, além de cursos sobre o Evangelho.
Na varanda da casa eram servidas as refeições aos pobres, cerca de duzentas todos os dias. Na sala ampla eram realizadas as sessões. Uma mesa cercada de cadeiras servia aos médiuns. Diante dela, ficavam os bancos destinados aos espectadores.
À esquerda, uma saleta era usada para os passes e, à direita, títulos espíritas se amontoavam em prateleiras numa livraria modesta.
Maria Olina acompanhou a construção do novo centro e sentiu vontade de promover, em sua casa, um curso sobre o Evangelho Segundo o Espiritismo.

CONTINUA AMANHÃ

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