segunda-feira, 20 de junho de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - DIANTE DA MORTE - PARTE 3

CONTINUAÇÃO

De Feelings, de Morris Albert até sinfonias de Bach, Beethoven e companhia.
Mesmo assim, de vez em quando, sonolento, ele se distraía e errava.
Numa noite, colocou no papel mais uma carta de um filho morto para uma mãe inconsolável. A mulher acreditou em cada palavra, mas, com delicadeza, corrigiu três nomes.
Chico nem piscou. Apagou o errado, substituiu pelo correto e se limitou a dizer:
- A borracha é como a reencarnação. Apaga o que está errado para escrever o certo...
Sua voz estava cada vez mais distante. E só era ouvida por todos no salão graças a um microfone e aos alto falantes.
Quando seu estado de saúde melhorava, ele prolongava a noitada. Numa delas, escreveu quatro cartas. Ficou exausto e, após pingar o ponto final na quadragésima página, desabafou:
- Estou no fim.
Os auxiliares cercavam o espírita e mantinham o desespero alheio à distância. O número de pessoas frustradas crescia. Muitos voltavam para a casa a centenas, ou até milhares de quilômetros, decepcionados com Chico Xavier. Um dos desesperados decidiu insistir. Em julho de 1983, um senhor de meia idade, bem vestido, saltou sobre o muro da casa de Chico e começou a gritar como um louco. Os PMs não estavam a postos como de costume. Eurípedes Higino dos Reis também estava fora.
E o inconformado berrava. Vizinhos tentavam convencê-lo a desistir do encontro naquela tarde. Chico estava doente, precisava descansar.
Nenhum argumento funcionou.
O homem não podia esperar pela sessão no Grupo Espírita da Prece, não podia correr o risco de ficar fora do grupo selecionado para uma conversa com o médium. Estava apoplético. E gritava. Uma hora se passou, duas, três.
- Não saio daqui enquanto não falar com você.
Os berros atingiam Chico no quarto dos fundos. Encolhido sob o cobertor, no escuro, ele rezava. O coração era sacudido pelos gritos do intruso. O peito doía.
Chico se antecipou ao infarto e tomou uma decisão também desesperada: se arrastou até a beira do muro e, aos pés do homem, de joelhos sobre o cimento, implorou com um resto de voz:
- Por favor, eu lhe rogo, me deixe. Preciso mais agora do seu silêncio que o senhor do meu auxílio. Volte na semana que vem que o atenderei.
O homem foi embora, penalizado.
Nem todos sentiam pena do médium. Muitos começaram a ter raiva. Os rumores ganhavam força. Chico recebia ricos, famosos e poderosos selecionados por seu  "filho adotivo " Eurípedes. Sua casa estava sempre aberta para cantores, deputados, senadores.
E os outros? Eram esquecidos em favor de visitantes como Wanderléia. A cantora foi recebida no mesmo dia no Grupo Espírita da Prece. Estava arrasada. Seu filho, Leonardo, de dois anos, tinha morrido afogado na piscina de sua casa. Chico apertou sua mão e deu a notícia. O menino voltaria em outra gravidez. Ela respirou fundo e acreditou. No ano seguinte, nasceu uma menina.
Em 1985, dona Risoleta, viúva de Tancredo Neves, também bateu à porta do espírita e foi recebida de braços abertos. Quatro meses após a morte do quase presidente da República, ela pedia uma "mensagem " do marido. Saiu de mãos abanando: ainda não era hora de ele entrar em contato. Talvez não fosse nem sensato.
Os visitantes ilustres se sucediam e os barrados na porta protestavam. Um deles chegou perto de Chico e comunicou, com uma faca na mão:
- Vim aqui te matar, mas não tenho coragem. Chico se limitou a dizer:
- Deus é quem sabe, meu filho.
Um outro acusou:
- Você tem amigos na penúria, mas só vai a São Paulo em carrão de gente rica.
Chico respondeu:
- Só meus amigos ricos têm carro e, como vou sempre da noite para o dia fazer acupuntura, aproveito a oferta deles.
Com o máximo de discrição, acompanhado de poucos amigos, Chico fazia questão de percorrer os barracos para visitar doentes pobres nos bairros da periferia na noite de 24 para 25 de dezembro. Todo Natal, ele liderava uma comitiva formada por vários carros, repletos de cestas com alimentos, brinquedos e doces. O Papai Noel franzino, com sua peruca bem penteada e o sorriso sempre aberto, entrava nas casas e era recebido com aplausos pelos adultos. Algumas crianças cantavam Noite Feliz e outras músicas natalinas.
Chico já era velho conhecido de muitos deles. Entre seus anfitriões, estava sempre um rapaz, vítima de hidrocefalia, que mendigava pelas ruas de Uberaba a bordo de um carrinho de rolimã. Ele cantava canções de amor, pedia cigarros, Chico providenciava maços com amigos e continuava a peregrinação.
Sempre parava na casa de Terezinha, entrevada numa cama há 52 anos. No último encontro, ela chorou ao ver Chico entrar, O visitante, amparado por amigos, se lembrou de ter prometido a ela um lenço vermelho no ano anterior. Não tinha nenhum à mão, mas logo as auxiliares providenciaram um. Terezinha, muda, sorriu como uma criança:
- É, você foi uma grande bailarina espanhola, não foi mesmo?
A caminhada, marcada por distribuição de presentes para até mil pessoas, costumava começar às oito horas da noite e se arrastar até as quatro da manhã.
Aos sábados, Chico Xavier estava lá, firme e forte, embaixo do abacateiro. Ele descia do Opala de Eurípedes e era recebido com aplausos pela multidão. Em silêncio, as pessoas ouviam seu discurso, após a leitura de trechos do Evangelho Segundo o Espiritismo e O Livro dos Espíritos. As lições eram passadas com bom humor.
- Por que acumular tanto? Existem pessoas que possuem 35 pares de sapatos. Onde vão arrumar setenta pés?
- É preciso perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete, matematicamente, 490 vezes. Lá pela centésima vez em que estivermos perdoando, falaremos:
- "Você já está perdoado para sempre. Não vou ter o trabalho de perdoá-lo mais ".
As frases se seguiam e eram anotadas por um dos espíritas mais atuantes de Uberaba, o cirurgião-dentista Carlos Bacelli, dirigente da Aliança Municipal Espírita de Uberaba, parceiro de Chico em dez livros e autor de quatro publicações sobre o espiritismo.
Naquelas reuniões ao ar livre, Chico aproveitava para se desculpar pela ausência cada vez mais freqüente. A cada dia recebia menos companheiros em casa.
Muitos deles começavam a ser barrados na porta da casa de Chico por Eurípedes e nunca mais voltavam.
Chico usava metáforas médicas para explicar suas   "faltas ":
- Eu sempre dispus de um companheiro que me auxiliou nos momentos difíceis da vida. Mas esse amigo mudou bastante. Se quero sentar, ele quer a cama, se eu me levanto, ele quer sentar, se quero ir a algum lugar, ele tem dificuldades em me acompanhar. Ele quer a cadeira de balanço. E eu lutando com esse amigo. Esse amigo. Esse amigo alterado é meu corpo.
Numa tarde, um jornalista fez o favor de comentar, diante de seu corpo já encarquilhado:
- Eu o estou procurando há quinze dias e somente agora te achei. Mas achei uma ruína humana.
Chico retribuiu a gentileza:
- Graças a Deus, porque o senhor me coloca no meu lugar.
Chico buscava fôlego em campanhas beneficentes e nos encontros ao ar livre e gastava sua energia no Grupo Espírita da Prece. As histórias surpreendentes, e consoladoras, se acumulavam. Da ponta de seu lápis saíam, por exemplo, mensagens como a enviada por uma filha a sua mãe. Ela, o marido e suas duas filhas tinham morrido quando o carro em que viajavam bateu de frente com um caminhão de refrigerantes. A tragédia era arrematada por um detalhe ainda mais assustador: a autora da carta, Maria das Graças Gregh, estava grávida de nove meses quando morreu.
Na carta de Maria das Graças escrita por Chico, vinham notícias de Gregh Júnior, ele mesmo, o feto enterrado em sua barriga. Já era um garoto no outro mundo:
- Foi um sono indescritível, porque me vi, como num pesadelo, arrastada para fora de um turbilhão de destroços e acomodada em grande maca, na idéia de que continuava em meu corpo físico, a caminho de um hospital.
Por mais estranho que possa parecer, o meu pesadelo realidade era feito de impressões e de dores condicionadas de um parto prematuro. Achava-me dopada por medicamentos ou forças que até hoje não sei explicar e senti perfeitamente que uma cesariana se processava... a criança repousava junto de mim.
Textos como esses viravam coletâneas, chegavam às livrarias e se tornavam até temas para pesquisas. Marlene R. S. Nobre, mulher do Deputado Freitas Nobre, diretora do jornal Folha Espírita, se juntou a outros três pesquisadores e estudou cem mensagens particulares escritas por Chico Xavier. Após entrevistarem os destinatários de cada carta do além, eles chegaram a conclusões curiosas. Por exemplo: 58% das pessoas brindadas com cartas de seus mortos eram católicas (contra 37% de espíritas), o pai recebia mais notícias do que a própria mãe (45% contra 38%), 25% das pessoas beneficiadas com as mensagens particulares nunca tinham se encontrado com Chico Xavier antes (65% o visitaram mais de um vez). Em 95% dos casos, Chico não conhecia o morto. Nenhum dos consultados encontrou um erro nas mensagens.
Em algumas longas noites, quando seu coração deixava, Chico chegava a pôr no papel oito cartas do outro mundo. Saía esgotado. Em 1985, diante da romaria de sofredores até a cadeira onde ele estava sentado, desabafou:
- A dor de tanta gente me penetra em toda a alma.
Ele se sentia impotente. Por que a multidão ainda precisava tanto dele? Por que não colocava em prática as lições publicadas em seus quase trezentos livros? Por que não se consolava com os textos ditados pelos mortos?
Para se proteger do desânimo, ele recorria ao bom humor recomendado por Eça de Queiroz. E se permitia trocadilhos típicos de Emmanuel.

CONTINUA AMANHÃ

Nenhum comentário: