domingo, 19 de junho de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - DIANTE DA MORTE - PARTE 2

CONTINUAÇÃO


Vanucci tomou fôlego e, com a ajuda do ator Paulo Figueiredo e de Hilton Gomes, adaptou os textos para o teatro. A moral de cada história: na roda viva das reencarnações, os crimes não compensavam. Os espíritos sofriam, e muito, pelos erros de cada vida.
Os ensaios começaram com a adesão de atores espíritas como Felipe Carone e Lúcio Mauro.
Numa noite, Vanucci pensou em desistir: tinha medo do fracasso. Aquela sucessão de mensagens moralistas poderia acabar mal. Ele já podia ver os teatros vazios. Chico encarou o amigo e garantiu, convicto:
- A casa estará sempre cheia. Nem que seja só de espíritos.
Vanucci montou a peça para Chico Xavier no quintal do Grupo Espírita da Prece, entre árvores, ao ar livre. O protegido de Emmanuel se sentou atrás da mesa de madeira, na varanda, e ficou atento a cada esquete. De vez em quando ria, mesmo sem motivo aparente. Ninguém sabia, mas ele acompanhava também um espetáculo paralelo, montado por personagens tão invisíveis como bem humoradas.
Chico Xavier não teve dúvidas:
- Vai ser um sucesso. Nós vamos morrer e a peça vai continuar.
Um iluminador ficou apavorado. Não queria morrer tão cedo e abandonou o espetáculo antes da estréia. Azar dele. Durante oito meses, o Teatro Vanucci (com 420 lugares) teve a lotação esgotada. A peça se transformou em fenômeno de bilheteria. Encenada pela primeira vez em janeiro de 1982, seria vista em onze anos por 2 milhões de espectadores de carne e osso, fora os invisíveis.
Desde a primeira apresentação, metade da bilheteria foi revertida para instituições de caridade.
Mesmo com dores no peito, e apesar dos protestos de seus médicos, Chico Xavier mantinha o ritmo acelerado. O trabalho, para ele, era um santo remédio. E a caridade era quase milagrosa. No Dia das Mães, Chico buscava força em visitas aos presos em Uberaba. Distribuía sorrisos, cumprimentos, algum dinheiro (de valor simbólico) e ia embora. Nunca leu uma frase do Evangelho:
- Não poderia aproveitar que eles estão atrás das grades para dar sermão.
Quando lhe perguntavam se havia muitos obsessores na cadeia, ele afirmava:
- Eles já fizeram o que queriam.
Chico Xavier se sentia bem perto dos presidiários. Parecia ganhar fôlego novo e, em muitas ocasiões, chegava a imaginar a hipótese de  "passar umas férias na cadeia, com aqueles espíritos brilhantes, maravilhosos..."
No mês de dezembro, além de promover as concorridas e tumultuadas distribuições de Natal, Chico Xavier passou a visitar a Colônia Santa Marta, em Goiânia, especializada no tratamento de hansenianos. Ele era recebido com flores e com bebês para abençoar e saía com os bolsos repletos de pedidos de preces. Numa de suas visitas, uma das mães se aproximou da cama onde o filho dormia e agonizava, e chamou:
- Acorda, é Chico Xavier.
O rapaz, já em fase terminal, abriu os olhos com dificuldade e sorriu. A mulher, eufórica, comemorou:
- Não disse que um dia nos encontraríamos com ele?
Juntou as mãos como quem agradece a Deus e disse entre um soluço e outro:
- Louvado seja porque somos leprosos, meu filho.
Chico, também aos prantos, se debruçou sobre a cama, beijou as duas faces do jovem e seguiu adiante sem dizer uma palavra.
Numa de suas visitas à Colônia, ele interrompeu a caminhada diante do portão de entrada e começou a chorar. Preocupada, a anfitriã perguntou qual era o problema. E ouviu a resposta:
Está tudo bem. É que o patrono da Colônia veio nos dar boas vindas. Ele está dizendo que hoje abraçará e beijará todos os companheiros internados nesta casa.
O patrono espiritual da Colônia era São Francisco de Assis. Chico entrou com sua comitiva e, além de cumprimentar cada um dos leprosos, distribuiu presentes: dinheiro para os adultos e brinquedos para as crianças.
Com o tempo, Chico ganhou admiradores devotados na Colônia. Anos mais tarde, quando já não conseguia andar sem ajuda, ele se sentou em uma cadeira para trocar beijos e abraços com os doentes. De repente, uma senhora bem vestida, em visita a um parente internado, aproximou-se de Chico e, sem dizer uma palavra, se ajoelhou diante dele e beijou seus pés.
Chico chorou. Se estivesse saudável, teria impedido aquele gesto. Ele não era santo, a idolatria o incomodava.
E a romaria continuava no Grupo Espírita da Prece.
As cenas de fanatismo eram constantes. Numa das distribuições natalinas, um homem ajoelhou-se diante de Chico e se arrastou com as mãos unidas em prece:
- Diante do senhor eu tenho que passar é de joelhos.
Em 1982, Chico Xavier se envolveu em mais um crime. Desta vez, a vítima era o Deputado Federal Heitor Alencar Furtado, de 26 anos, filho de Alencar Furtado, ex líder do MDB cassado pelo AI-5. Ele foi assassinado logo após um comício da campanha para deputado estadual pelo PMDB. Depois de viajar 140 quilômetros, estacionou no acostamento para dormir um pouco, próximo à entrada de um posto de gasolina, na cidade de Nova América de Colina. Mal teve tempo de se acomodar no banco e esticar as pernas.
Um tiro atingiu seu peito em cheio. A bala saiu da carabina do policial José Aparecido Branco, o Branquinho. Um primo da vítima, Fábio Alencar, assistiu à cena.
Ele viajava num carro logo atrás e chegou no momento do disparo. Seu grito veio tarde demais:
- Não atirem, quem está no carro é o deputado Alencar Furtado.
O estampido ecoou no país inteiro, O Brasil ainda enfrentava a tal abertura lenta e gradual. O crime poderia ter motivos políticos. Muitos tentavam adivinhar o nome do mandante do assassinato. Branquinho insistia na tese do tiro acidental.
O deputado Ulysses Guimarães, presidente nacional do PMDB, pediu justiça ao ministro Ibrahim Abi Ackel. O presidente Figueiredo manifestou revolta. O ministro da Marinha, almirante Maximiano da Fonseca, censurou o clima de violência generalizada. Tancredo Neves, candidato do PMDB ao governo de Minas, pediu um minuto de silêncio.
O jornal O Estado de S. Paulo imprimiu a manchete: "Arma que matou Heitor não disparou por acidente ".
Após descrever as perfeitas condições de uso da carabina, o jornal arriscou: "O policial agora pode ser condenado a trinta anos de prisão por assassinato por motivo fútil, caracterizando homicídio doloso ".
O réu insistia em sua inocência, mas, como todo pobre acusado por poderosos, admitia para si mesmo a hipótese de passar o resto da vida na prisão.
As cartas já estavam marcadas, quando uma testemunha de última hora entrou no jogo: Heitor Alencar Furtado, o morto. Em texto escrito por Chico Xavier e assinado pela vítima, veio a frase curta e grossa:  "O disparo foi acidental ".
O pai do candidato a deputado conversou com Chico, leu e releu a carta, recebeu do além outros textos atribuídos a Heitor e deu o veredicto:
- As declarações são mesmo de meu filho.
Em 1984, o Tribunal do Júri de Mandaguari bateu o martelo após 33 horas de julgamento: a morte foi mesmo provocada por um tiro acidental. O juiz desclassificou o crime de homicídio qualificado para homicídio simples, resultante de negligência, e a pena foi abrandada para oito anos e vinte dias.
Mais sorte teve o bancário Francisco João de Deus. Em 1985, ele estava prestes a ir para a cadeia por ter assassinado com um tiro no pescoço sua mulher, Gleide Dutra de Deus, ex Miss Campo Grande. As circunstâncias da morte apontavam para mais um crime passional sem muita imaginação. O casal voltava de uma festa.
Gleide era linda, Francisco era ciumento e vivia armado. Pronto. Homicídio.
O assassino insistia: o tiro tinha sido acidental. Poucos acreditavam. Sete meses após o crime, ainda em 1980, ele recorreu a Chico Xavier. Precisava de conforto e conseguiu muito mais. Um depoimento foi decisivo no tribunal. A testemunha chave: Gleide. Ela voltou à tona, em carta escrita por Chico, para garantir ter sido vítima mesmo de um tiro acidental, disparado quando seu marido tirava a arma da cintura. O  "testemunho " coincidiu com o de duas enfermeiras que atenderam a vítima, já em agonia no hospital. Pouco antes de morrer, ela defendeu a inocência do marido.
Resultado: Francisco foi absolvido por sete votos a zero.
A influência de Chico nos tribunais começou a incomodar. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Hermann Assis Baeta, pediu a seus colegas de Mato Grosso do Sul cópias do processo. O presidente da OAB regional do estado, Hélvio Freitas Pissurno, reagiu à intromissão:
- No Tribunal do Júri, onde vale a vontade dos jurados, não se pode impedir esses procedimentos.
Mas admitiu que, num julgamento estritamente jurídico, a psicografia não teria validade.
O criminalista Evaristo de Moraes Filho também protestou:
- Enquanto não provarem cientificamente que a alma existe, esse tipo de prova não deveria ser aceito pelos juízes.
Casos como esse causavam polêmica e levavam multidões ao Grupo Espírita da Prece. Os vivos precisavam de notícias de seus mortos e Chico Xavier ainda era o médium mais confiável do país. Mas havia um problema: ele estava também cada vez mais inalcançável. Vivia enfurnado em seu quarto para escrever os livros, faltava às sessões de desobsessão privativas realizadas às segundas feiras, viajava a São Paulo de quinze em quinze dias para tratar dos problemas circulatórios com acupuntura.
Ele se cuidava. Nas sessões públicas, usava dois artifícios para combater o sono provocado pelo coquetel de vasodilatadores e analgésicos: bebericava xícaras de chá e reforçava a trilha sonora durante a psicografia com músicas mais modernas.

CONTINUA AMANHÃ

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