segunda-feira, 9 de maio de 2011

AS VIDAS DE CHICO XAVIER - O MENINO MAL ASSOMBRADO - 2ª PARTE

CONTINUAÇÃO

Após reunir as crianças, Cidália decidiu colocá-las no colégio. Não seria nada fácil. O salário mal dava para o indispensável. Como comprar caderno, lápis, livros?

Pediu a ajuda de Chico. Plantaria uma horta, e ele venderia os legumes.

O menino abriu um sorriso e arregaçou as mangas. Sempre descalço, carregou baldes com água, encheu balaios com esterco colhido no campo e, em poucas semanas, já percorria as ruas da cidade com um cesto de verduras a tiracolo. Cada maço de couve ou cada repolho valia um tostão. Até dezembro de 1918, de tostão em tostão, eles conseguiram juntar 32 mil réis. Em janeiro, Chico já estava matriculado no Grupo Escolar São José.

Mas as alucinações persistiam. O menino se levantava da cama no meio da noite, batia papo com fantasmas e, muitas vezes, estragava o café da manhã do pai com notícias de parentes mortos e descrições de viagens por cenários fantásticos. Cidália escutava, não entendia, mas jurava acreditar no garoto.

- Um dia, quem sabe, vai aparecer alguém que entenda você e explique suas visões e as vozes que você escuta - dizia para Chico. Mas ela estava preocupada.

O menino deveria poupar o pai de suas histórias. Para ele, o filho estava mesmo endemoniado. Talvez Deus desse um jeito. João Cândido levou o "aluado" até o padre Sebastião Scarzello.

O menino ajoelhou-se no confessionário e desfiou seu rosário de histórias mirabolantes.

Nas missas, pela manhã, figuras reluzentes transformavam as hóstias em focos de luz e defuntos conhecidos de Pedro Leopoldo reapareciam com rosas nas mãos.

Contra delírios tão estapafúrdios, só mesmo uma saraivada de rezas, uma série de novenas pelo descanso dos mortos e muito trabalho. Foi o padre Scarzello quem livrou o menino do risco de ser internado como louco. A salvação não veio com as mil ave marias ou com as pedras equilibradas na cabeça por Chico durante as procissões.

Veio com o salário. A fábrica de tecidos estava empregando crianças para o turno da noite e o padre aconselhou Chico a se candidatar à vaga.

Só assim o pai tiraria aquela idéia da cabeça.

Melhor um filho com dinheiro para ajudar em casa do que um maluco hospitalizado.

Com nove anos, Chico começou a trabalhar como tecelão. Entrava às 3h da tarde, saía à 1h da manhã, dormia até as 6h, ia para a escola, saía às 11h, almoçava, dormia uma hora depois do almoço, entrava de novo na fábrica. Nem parecia aquele menino mal-assombrado.

Era só fachada.

Depois do trabalho, corria para o quintal. Ia conversar com Cidália, sempre debruçada sobre a roupa suja no tanque. Nesses encontros, ele costumava enxergar, próximas ao varal, figuras cobertas com mantos coloridos. Perguntava à segunda mãe quem era aquela gente e ficava sem resposta.

Um dia, o garoto arriscou uma tese, baseado na profusão de azuis, vermelhos, verdes e amarelos.

- Acho que eles moram no arco-íris.

Cidália desconversava:

- Sou muito ignorante, mas acredito em você.

Só não entendo direito.

O padre Scarzello decidiu ser mais rigoroso e aconselhou o pai a afastar Chico da má influência dos livros, revistas e jornais.

João fez uma fogueira com as páginas proibidas. Inconformado com o pai e o padre, Chico recorreu à mãe invisível.

- Eles estão contra mim. Acham que estou perturbado.

Ouviu mais um conselho:

- Aprenda a calar-se. Quando se lembrar, por exemplo, de alguma lição ou experiência recebida em sonho, fique em silêncio. Mais tarde talvez você possa falar.

Chico calou-se. Restringiu seus desabafos à confissão. Azar dele. O padre Scarzello decidiu, a pedido do pai do menino, ter uma conversa mais dura com o garoto.

E renegou os pretensos bate papos entre Chico e a mãe.

Ninguém volta a conversar depois da morte. O demônio procura perturbar-lhe o caminho.

- Mas, padre, foi minha mãe quem veio.

- Foi o demônio.

À noite, depois de muito choro, Chico sonhou que encontrava Maria João de Deus. Foi a segunda despedida deles. A mãe lhe cobrou obediência a João Cândido e ao padre, pediu que não brigasse por sua causa e avisou que sumiria de vista.

Chico acordou sacudido por soluços e enxugou os olhos, resignado. Só a veria de novo sete anos depois.

Na escola, fatos estranhos aconteciam. Muitas vezes, o menino sentia mãos inexistentes sobre as suas, guiando seus movimentos. Os colegas se chateavam com as visões do filho de João Cândido e, durante o recreio, tentavam colocar, a socos e pontapés, um pouco de juízo naquela cabeça dura. Intimidado, Chico abriu mão do descanso entre as aulas.

Em 1922, o país comemorava o centenário da Independência. O governo de Minas instituiu vários prêmios de redação para alunos da quarta série primária.

Chico estava prestes a começar o texto quando viu um homem a seu lado ditando o que ele deveria escrever. Perguntou ao companheiro de banco se ele estava vendo algo.

O colega negou.

Chico pediu licença à professora, Rosária Laranjeira, uma católica fervorosa, aproxi-mou-se do estrado onde ela ficava e lhe contou o que estava acontecendo.

- O que o homem está mandando você escrever?

Chico repetiu a frase:

- O Brasil, descoberto por Pedro Álvares Cabral, pode ser comparado ao mais precioso diamante do mundo, que logo passou a ser engastado na coroa portuguesa...

Dona Rosária disse que não era nada normal que ele visse pessoas que ninguém via, garantiu que ele deveria estar ouvindo a si mesmo e mandou-o de volta à carteira.

Não importava se o texto fosse ditado ou não por algum homem invisível. O importante era concluí-lo.

Algumas semanas depois, a Secretaria de Educação de Minas divulgou os resultados do concurso, disputado por milhares de estudantes. Chico Xavier, de Pedro Leopoldo, recebeu menção honrosa. A turma ficou dividida, Colegas espalharam o boato de que o garoto tinha copiado o trecho premiado de um livro qualquer. Outros, a minoria, apostaram nos dons, mediúnicos ou literários, do amigo.

Os grupos se formaram e alguém, na sala, lançou o desafio. Se o texto dele foi ditado por alguma pessoa do outro mundo, por que esse homem não reaparecia para escrever sobre algum assunto proposto pelos colegas?

No exato momento do desafio, Chico viu a assombração pronta para escrever e comunicou o fato à professora. Ela resistiu à idéia, mas a pressão dos colegas foi mais forte.

Enquanto Chico caminhava até o quadro negro, uma das alunas, Oscarlina Lerroy, propôs o assunto: areia.

- Tenho carregado muita areia para ajudar meu pai numa construção.

As gargalhadas ecoaram na sala. O tema era insignificante, ridículo. Chico pegou o giz.

Silêncio absoluto. Palavras inusitadas se arrastaram pelo quadro negro:

"Meus filhos, ninguém escarneça da criação. O grão de areia é quase nada, mas parece uma estrela pequenina refletindo o sol de Deus".

Após o espetáculo, dona Rosária proibiu qualquer comentário na sala de aula sobre pessoas invisíveis.

Chico concluiu o primário em 1923, após repetir a quarta série. A repetência não foi provocada por falta de estudo, mas de saúde. O menino enfrentava problemas respiratórios.

Seu pulmão sofria com a poeira do algodão na fábrica de tecidos. A professora se apegou tanto a ele que, quando foi transferida para Belo Horizonte, pediu a João Cândido para levar o garoto com ela. O pai não autorizou. Precisava do salário de Chico.

No ano seguinte, por recomendação médica, o garoto trocou a tecelagem pelo Bar do Dove, de Claudomiro Rocha. Varria o chão, lavava a louça, cozinhava e continuava mal-assombrado. Quando já tinha quinze anos, pediu socorro ao padre Scarzello.

Em meio a uma crise de choro, Chico se queixou do assédio incessante de um espírito sofredor.

O padre, impressionado com a devoção do rapaz a Jesus, lhe disse para não se desesperar com as vozes e visões.

Se elas vieram da parte de Deus, ele irá te abençoar e te dar forças para fazer o que deve ser feito.

Após o discurso, saiu com o garoto da igreja e lhe comprou um par de sapatos. Chico deixou de andar descalço.

O salário do Bar do Dove era miserável e, depois de dois anos de dificuldades, o garoto se mudou para o armazém de José Felizardo Sobrinho, o ex marido de Rita de Cássia, já morta e substituída por Júlia Antônia de Carvalho. Com um facão afiado na mão, o garoto estava sempre pronto a cortar toucinho para o freguês e ficava feliz da vida quando o patrão vendia fiado. Atrás do balcão, pesava o arroz, cortava a lingüiça, arrumava as prateleiras. Atendia a todos, paciente, das 6h30 da manhã às 8h da noite. No final do mês, recebia 13 mil réis. Uma ninharia. Mas não reclamava. Seu único drama era vender cachaça. O sujeito bebia e Chico tinha que carregar.

Nessa época, ele fez amizade com a nova mulher de Felizardo. Bordava com ela e ensaiava, a seu lado, pinceladas sobre panos presos a arcos de madeira.

Namoradas?

Nenhuma. Só se permitia arroubos apaixonados por encomenda, quando, a pedido dos amigos, escrevia cartas de amor às namoradas deles. O rapaz era esquisito mesmo.

Comungava, confessava, ia à missa, acompanhava procissões e trabalhava muito.

Além do normal.

Em 1927, uma das irmãs de Chico, Maria Xavier, ficou doente. Delirava, arregalava os olhos, se contorcia, suava frio, urrava impropérios.

Médico nenhum deu jeito. A situação era tão dramática que João Cândido decidiu passar por cima do padre e apelar para um casal de amigos espíritas. Foi até a Fazenda de Maquiné, em Curvelo, a cem quilômetros de Pedro Leopoldo, e voltou de lá com José Hermínio Perácio e sua mulher Carmem.

CONTINUA AMANHÃ

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